Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro IV/IV

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IV.


NADA SE ESCONDE, NADA SE PERDE.


Era tempo de matar a pieuvre. Gilliatt estava quasi sem folego; tinha o braço direito e o corpo rôxos; esboçavam-se nelles mais de duzentos tumores; alguns vertiam sangue. O remedio para essas lesões é a agua salgada; Gilliatt mergulhou n’agua. Ao mesmo tempo esfregava-se com a palma da mão e os tumores desappareciam.

Recuando e mergulhando n’agua, achou-se elle proximo da especie de cava que ficava ao pé do buraco onde a pieuvre o agarrou.

A cava prolongava-se obliquamente, e a secco, debaixo das grandes paredes da caverna. Os seixos que alli se tinham ajuntado levantavam o fundo acima das marés ordinarias. Essa anfractuosidade, era um largo cimbrio abatido, um homem podia entrar curvando-se. A claridade verde da caverna penetrava ahi e illuminava-a fracamente.

Aconteceu que, esfregando a pelle entumecida, Gilliatt levantou machinalmente os olhos.

Olhou para dentro da cava.

Estremeceu.

Pareceu-lhe vêr no fundo desse buraco, na sombra, uma especie de cara rindo.

Gilliatt ignorava a palavra allucinação, mas conhecia a cousa. Os mysteriosos encontros com o inverosimil que chamamos allucinações, existem na natureza. Illusões ou realidades, as visões apparecem. Quem está presente, vê-as passar. Gilliatt, como dissemos, era um pensativo. Tinha a grandeza de ser ás vezes allucinado como um propheta. Não se é impunemente sonhador dos lugares solitarios.

Acreditou em uma dessa miragens das quaes, homem nocturno como era, mais de uma vez teve medo.

A anfractuosidade figurava exactamente um forno de cal. Era um nicho baixo, em fórma de asa de cesto, cujas curvaturas abruptas iam extreitando-se até á extremidade da crypta onde os seixos e a abobada se juntavam e fechavam.

Gilliatt entrou, e inclinando a cabeça, dirigio-se para o que estava no fundo.

Era com effeito alguma cousa que ria.

Era uma caveira.

Só havia a cabeça, havia o esqueleto.

Um esqueleto humano estava deitado na cava.

O olhar de um homem audaz, em taes occasiões, quer saber das cousas a fundo.

Gilliatt olhou em roda de si.

Estava cercado de uma porção de carangueijos.

Não se mexiam elles. Era o aspecto de um formigueiro morto. Todos os carangueijos estavam mortos. Estavam vasios.

Os grupos, semeados, faziam no chão de seixos que enchiam a cava, constellações disformes.

Gilliatt, com o olhar fito em outra parte, caminhára por cima sem reparar.

Na extremidade da crypta onde chegára Gilliatt, havia maior espessura. Era um montão immovel de antennas, de patas, e de mandibulas. Pinças abertas conservavam-se direitas, e já se não fechavam. As caixas de ossos não se mechiam debaixo da sua crosta de espinhos; algumas viradas mostravam o interior livido. Este amontoado parecia uma multidão de sitiantes e tinha o entravamento de um espinheiro.

Debaixo desse montão estava o esqueleto.

Via-se debaixo dessa porção de tentaculos e escamas, o craneo com as estrias, as vertebras, os femures, os tibias, os longos dedos nodosos, com unhas. As costellas estavam cheias de caranguejos. Tinha palpitado alli algum coração. Os buracos dos olhos estavam atopetados de bolor marinho. Algumas conchas tinham deixado a sua baba nas fossas nasaes. Não havia nesse recanto da caverna nem sargaços, nem hervas, nem sopro de ar. Nenhum movimento. Os dentes riam.

O lado assustador do riso, é a imitação que faz delle uma caveira.

Aquelle maravilhoso palacio do abysmo, bordado e incrustado de todas as pedrarias do mar, revellava por fim o seu segredo. Era um covil, a pieuvre morava ahi; e era uma tumba, ahi jazia um homem.

A immobilidade espectral do esquelleto, e dos molluscos oscilavam vagamente, por causa da reverberação das aguas subterraneas que tremia naquella petrificação. Os carangueijos, mistura medonha, pareciam ter acabado a sua refeição. Aquellas cascas pareciam comer aquelle esqueleto. Nada mais estranho do que aquella bicharia morta, sobre aquelle homem finado Sombrias continuações da morte.

Gilliatt tinha diante de si, o armario da pieuvre.

Visão lugubre, donde surgia o horror profundo das cousas. Os carangueijos tinham comido o homem, a pieuvre tinha comido os carangueijos.

Não havia nenhum resto de roupa ao pé do cadaver. O homem devia ter sido agarrado nú.

Gilliatt attento e examinando, começou a tirar os carangueijos de cima do homem. Quem era esse homem? O cadaver estava admiravelmente dissecado. Dissera-se uma preparação de anatomia; toda a carne estava eliminada; já não restava nenhum musculo. Se Gilliatt fosse do officio reconheceria isso. Os periostios estavam brancos, polidos e como que lustrados. Sem alguns filamentos verdes que apareciam aqui e alli, seria marfim puro. As divisões cartilaginosas, estavam delicadamente affiladas. A tumba faz essas joalherias sinistras.

O cadaver estava como que enterrado debaixo de carangueijos mortos. Gilliatt desenterrava-o.

De repente inclinou-se vivamente.

Acabava de vêr á roda da columna vertebral, uma especie de atilho.

Era um cinto de couro, que evidentemente fôra atado ao ventre do homem antes de morrer.

O couro estava cheio de mofo. A fivella estava enferrujada.

Gilliatt puchou o cinto; as vertebras resistiram, e Gilliatt teve de quebral-as, para tirar o cinto. O cinto estava intacto. Começava a formar-se nelle uma crosta de conchas.

Gilliatt apalpou o cinto, e sentio um objecto duro de fórma quadrada no interior. Não era possivel abrir a fivella. Gilliatt cortou o couro com a faca.

O cinto continha uma caixinha de ferro, e algumas moedas de ouro. Gilliatt contou vinte guinéos.

A caixinha era uma velha boceta de marinheiro, abrindo-se por mola. Estava muito enferrujada. A mola completamente oxidada já não funccionava.

A faca veio em auxilio de Gilliatt. Com a ponta da lamina, fez elle pular a tampa da boceta.

A boceta abrio-se.

Só havia papel dentro della.

Um macinho de folhas finas, dobradas em quatro, estava no fundo da boceta. Estavam humidos, mas não alterados. A boceta hermeticamente fechada preservou-as. Gilliatt abrio-as.

Eram tres notas do banco de mil libras esterlinas cada uma, formando uma somma de setenta e cinco mil francos.

Gilliatt dobrou-as, pol-as na caixinha, aproveitou o pouco lugar que restava para deitar dentro os vinte guinéos, e fechou a caixinha o melhor que pôde.

Depois examinou o cinto.

O couro, outr’ora envernisado pela parte de fora, não o era no interior. Ahi estavam traçadas algumas letras com tinta gordurosa. Gilliatt decifrou as letras e leu: Sr. Clubin.