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Os Trabalhadores do Mar/Parte III/Livro II/II

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II.


A MALA DE COURO.


Desde madrugada Saint-Sampson estava de pé e Saint-Pierre Port começava a chegar. A ressurreição de Durande fazia na ilha um rumor comparavel ao que fez no meio dia da França a Salette. Havia multidão no caes para contemplar o cano que sabia da pança. Tinham vontade de ver e tocar na machina, mas Lethierry, depois de repetir, e á luz do dia, a inspecção triumphante da mecanica, tinha posto na pança dous marinheiros encarregados de impedir que ninguem se approximasse. O cano, porém, bastava á contemplação. A multidão pasmava. Só se fallava de Gilliatt. Commentava-se e acceitava-se a alcunha de engenhoso, a admiração acabava sempre por esta phrase: «Nem sempre é agradavel ter na ilha gente capaz de fazer cousas destas.»

De fóra via-se mess Lethierry assentado á mesa diante da janella e escrevendo, com um olho no papel, e outro na machina. Estava de tal modo absorto que apenas uma vez interrompeu-se para gritar: Doce! e para pedir noticias de Deruchette. Doce respondeu: «A menina levantou-se e sahio.» Mess Lethierry disse: «Faz bem em tomar ar. Esteve incommodada de noite por causa do calor. Havia muita gente na sala. E depois a sorpreza, a alegria e as janellas fechadas. Vai ter um marido soberbo!» E tornou a escrever. Já tinha escripto e fechado duas cartas dirigidas aos mais notaveis constructores de Bremen. Acabava de fechar a terceira.

O rumor de uma roda no caes fez-lhe levantar a cabeça. Inclinou-se á janella, e vio desembocar do atalho que ia ter á casa de Gilliatt um rapaz empurrando um carrinho de mão. O rapaz dirigia-se para o lado de Saint-Pierre Port. Havia no carrinho uma mala de couro amarella com pregos de cobre e estanho.

Mess Lethierry fallou ao rapaz.

— Onde vás?

O rapaz parou, e respondeu:

— Ao Cashmere.

— Para que?

— Levar esta mala.

— Pois bem, levarás tambem estas tres cartas.

Mess Lethierry abrio a gaveta da mesa, e pegou num pedaço de barbante, enlaçou as tres cartas que acabava de escrever, e atirou o embrulho ao rapaz que o recebeu no ar entre as duas mãos.

— Dirás ao capitão do Cashmere que sou eu quem escrevo, e que elle tenha cuidado com ellas. É para a Allemanha. Bremen via London.

— Nào fallarei ao capitão, mess Lethierry.

— Porque?

— O Cashmere não está no cáes.

— Ah!

— Está na barra.

— É justo, por causa do mar.

— Só posso fallar ao patrão do escaler.

— Recommenda-lhe as minhas cartas.

— Sim, mess Lethierry.

— A que horas parte o Cashmere?

— Ao meio-dia.

— Ao meio-dia hoje, é a enchente da maré. Tem contra si a maré.

— Mas tem vento de feição.

— Rapaz, disse mess Lethierry pondo o dedo index no cano da machina, vês isto? isto zomba do vento e da maré.

O rapaz pôz as cartas na algibeira, pegou outra vez no carrinho, e continuou a viagem para a cidade.

Mess Lethierry chamou:—Doce! Graça! Graça entreabrio a porta.

— Que ha, mess?

— Entra e espera.

Mess Lethierry pegou n’uma folha de papel e começou a escrever; se Graça, de pé atraz delle, fosse curiosa e esticasse o pescoço, poderia ler por cima do hombro, isto:

«Escrevo a Bremen para ver madeira. Tenho de fallar durante o dia aos carpinteiros para a avaliação. Vai ter á casa do decano para arranjar as dispensas. Desejo que o casamento se faça o mais cedo possivel, e já, será melhor. Estou tratando de Durande, trata tu de Deruchette.»

Datou e assignou Lethierry.

Não se deu ao trabalho de fechar a carta, dobrou-a simplesmente em quatro e deu-a a Graça.

— Leva isto a Gilliatt.