Os Trabalhadores do Mar/Parte III/Livro III/II

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II.


O DESESPERO DIANTE DO DESESPERO.


Era pouco menos de dez horas da manhã: o quarto de hora antes, como se diz em Guernesey.

O povo, segundo todas as apparencias, ia engrossando em Saint-Sampson. A população febricitante de curiosidade, ia toda para o norte da ilha, de maneira que a Angrazinha, que fica ao sul, estava mais deserta que nunca.

Comtudo, via-se ahi um bote e um remador. No bote havia um sacco de viagem. O bateleiro parecia esperar.

Via-se ao largo o Cashmere ancorado, que devendo partir lá para o meio dia, não fazia nenhum movimento de apparelho.

O viandante que, do qualquer dos caminhos-escadas tivesse prestado o ouvido, ouviria um murmurio de palavras na Angrazinha, e inclinando-se por cima, veria, a alguma distancia do bote, n’um recanto de pedra e galhos onde não podia penetrar o olhar do bateleiro, duas pessoas, um homem e uma mulher, Ebeneser e Deruchette.

Esses asylos obscuros das praias, que tentam as banhistas, não são tão solitarios como se pensa. Ás vezes espreita-se e ouve-se de fóra. Os que se refugiam podem ser facilmente acompanhados atravez das espessuras das vegetações, e graças á multiplicidade e entravamento dos atalhos. Os granitos e arvores que escondem o refugiado, podem esconder tambem uma testemunha.

Deruchette e Ebeneser estavam de pé diante um do outro, com o olhar no olhar; tinham as mãos presas. Ebeneser estava calado. Uma lagrima engrossada e presa entre os seus cilios hesitava em cahir, e não cahia.

A desolação e a paixão estavam impressas na fronte religiosa de Ebeneser. Havia tambem uma resignação pungente, hostil á fé, embora derivasse della. Naquelle rosto, simplesmente angelico até então, havia um começo de expressão fatal. Aquelle que até então só meditara sobre o dogma, entrava a meditar sobre a sorte, meditação nociva ao padre. Nessa meditação decompõe-se a fé. Nada perturba tanto o espirito como curvar-se ao peso do ignoto. O homem é o paciente dos acontecimentos. A vida é um perpetuo successo, imposto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso. As catastrophes e as felicidades, entram e sahern como personagens inesperadas. Tem a sua fé, a sua orbita, a sua gravitação fóra do homem. A virtude não traz a felicidade, o crime não traz a desgraça; a consciencia tem uma logica, a sorte tem outra; nenhuma coincidencia. Nada pode ser previsto. Vivemos de atropello. A consciencia é a linha recta, a vida é o turbilhão. O turbilhão atira á cabeça do homem cachos negros e céos azues. A sorte não tem a arte das transições. Ás vezes a vida anda tão depressa que o homem mal distingue o intervallo de uma peripecia á outra e o laço de hontem a hoje. Ebenezer era um crente mesclado de raciocinio e um padre mesclado de paixão. As religiões celibatarias sabem o que fazem. Nada desfaz tanto o padre como amar uma mulher. Todas as especies de nuvens ensombravam Ebeneser.

Contemplava demasiado Deruchette.

Aquellas duas creaturas idolatravam-se.

Havia na palpebra de Ebeneser a muda adoração do desespero.

Deruchette dizia:

— Não hade partir. Não tenho força para vêl-o ir-se embora. Eu acreditava poder despedir-me, e não posso. Ninguem é obrigado a poder. Porque foi hontem ao jardim? Não devia ir, se queria ir-se embora. Nunca lhe fallei. Amava-o, mas não o sabia. Somente, quando o Sr. Herodes leu a historia de Rebecca, e que os seus olhos encontraram os meus, senti as faces em fogo, e disse comigo: Oh! como Rebecca devia ter corado! Hontem se me dissessem que eu amaria o cura, ria-me. É o que ha de terrivel neste amor. Foi uma especie do traição. Não me acautelei. Ia á igreja, via-o, acreditei que todos eram como eu. Não lhe faço censura alguma, nada fez para que eu o ame, não se deu a nenhum trabalho, olhava-me, não é culpa sua se olha para as outras pessoas, e o resultado é que eu o adoro. Eu nem reparava. Quando as suas mãos pegavam n’um livro, era uma luz; quando os outros pegavam nelle, era apenas um livro. Ás vezes levantava os olhos para mim. Fallava dos archanjos, e era o archanjo. O que dizia, pensava-o eu logo. Antes de vêl-o não sei se acreditava em Deos. Depois que o vi, tornei-me uma mulher que faz as suas orações. Eu dizia a Doce: veste-me depressa, não quero faltar ao officio. E corria á igreja. Estar apaixonada por um homem, é isto. Eu não o sabia. Dizia comigo: Como estou devota! Depois de vêl-o é que soube que eu não ia á igreja por causa de Deos. Ia vêl-o é verdade. É formoso, falla bem, quando levanta os braços para o céo parece que tem o meu coração entre as suas duas mãos brancas. Eu estava louca. Ignorava-o. Quer que lhe diga a sua culpa? foi entrar hontem no jardim e fallar-me. Se nada me dissesse, eu nada saberia. Partiria, eu ficava triste, mas agora morrerei. Agora que eu sei que o amor não é possivel que se vá embora. Em que pensa? Parece que não me ouve.

Ebeneser respondeu:

— A senhora ouvio o que se disse hontem.

— Ai, sim!

— Que posso fazer?

Calaram-se um momento. Ebeneser continuou:

— Só uma cousa devo fazer agora. Partir.

— E eu, morrer. Oh! eu quizera qne não houvesse mar, e só houvesse o céo! Parece-me que isto arranjaria tudo, e a nossa partida seria a mesma. Não devia fallar-me. Porque me fallou? Que será agora de mim? Digo-lhe que hei de morrer. Ha de ter ganho muito quando eu estiver no cemiterio. Oh! tenho o coração despedaçado. Desventurada que sou! E meu tio não é máo, comtudo.

Era a primeira vez na sua vida que Deruchette dizia fallando de mess Lethierry, meu tio. Até então sempre dizia meu pai.

Ebeneser recuou um pouco e fez um signal ao bateleiro. Ouvio-se o ruido de um croque nas pedras e o passo de um homem no bote.

— Não! não! gritou Deruchette.

Ebeneser approximou-se della.

— É preciso, Deruchette.

— Não, nunca! Por uma machina! Será possivel? Vio hontem aquelle homem horrivel? Não deve abandonar-ine. Tem intelligencia, ha de achar um meio. Não é possivel que me dissesse para vir aqui hoje, com a idéa de partir. Não lhe fiz nada. Não tem motivos de queixa de mim. É naquelle navio que quer ir? Não quero. Não me deixe. Não se abre o céo para tornal-o a fechar. Digo-lhe que ha de ficar. Demais ainda não bateu a hora. Oh! eu te amo!

E unindo-se a elle, cruzou-lhe os dez dedos por traz do pescoço, como para fazer com os seus braços enlaçados em Ebeneser e com as suas mãos juntas uma oração a Deos.

Elle deslaçou aquella cadêa delicada, que resistio emquanto pôde.

Deruchette cahio assentada n’uma ponta de rocha coberta de hera, levantando com um gesto machinal a manga do vestido até o cotovello, mostrando o seu delicioso braço nú, com uma luz afogada e pallida nos olhos fixos. O bote approximava-se.

Ebeneser segurou-lhe a cabeça nas mãos; aquella virgem tinha o ar de uma viuva e aquelle mancebo tinha o ar de um avô. Tocou-lhe os cabellos com uma especie de precaução religiosa; fitou os olhos nella durante alguns instantes, depositou-lhe na fronte um desses beijos debaixo dos quaes parece que deveria abrir uma estrella, e com uma voz que tremia na suprema angustia e onde se sentia a dilaceração da alma, disse-lhe esta palavra, a palavra das profundezas: Adeos!

Deruchette rompeu em soluços.

Neste momento ouviram uma voz lenta e grave que dizia:

— Porque motivo não se casam?

Ebeneser voltou a cabeça. Deruchette levantou os olhos.

Gilliatt estava diante delles.

Acabava de entrar por um atalho lateral.

Gilliatt já não era o mesmo homem da vespera. Tinha penteado os cabellos, fez a barba, calçou os sapatos, vestio camisa branca de marinheiro com grandes collarinhos cabidos, vestio a roupa de marinheiro mais nova. Via-se um annel de ouro no dedo minimo. Parecia profundamente calmo. Estava livido.

Bronze que soffre, tal era aquelle rosto.

Os dous olharam para elle estupefactos. Embora não se podesse reconhecel-o, Deruchette reconheceu-o. Quanto ás palavras que elle acabava de pronunciar, estavam tão longe do que elles pensavam nesse momento, que resvalaram-lhe no espirito.

Gilliatt continuou:

— Que necessidade é essa de se dizerem adeos? Casem-se. Embarquem depois.

— Deruchette estremeceu da cabeça aos pés.

Gilliatt continuou:

— Miss Deruchette tem vinte e um annos. É senhora de sua vontade. Seu tio é apenas seu tio. Amam-se...

Deruchette interrompeu docemente.

— Como é que o senhor está aqui?

— Casem-se, continuou Gilliatt.

Deruchette começava a perceber o que lhe dizia aquelle homem. Murmurou:

— O meu pobre tio...

— Recusaria se o casamento estivesse por fazer, disse Gilliatt, e consentirá quando o casamento estiver concluido. Demais vão embarcar ambos. Quando voltarem, elle os perdoará.

Gilliatt accrescentou com um tom amargo:

— E depois, elle já não pensa senão em construir o vapor. Isso o distrahirá durante a sua ausencia. Tem Durande para consolal-o.

— Eu não quizera, balbuciou Deruchette n’um espanto misturado de alegria, não quizera deixar pesares indo-me embora...

— Não durarão muito tempo os pesares, disse Gilliatt.

Ebeneser e Deruchette tiveram uma especie de deslumbramento. Tranquillisaram-se. Na sua decrescente perturbação, iam entendendo as palavras de Gilliatt. Ainda havia alguma nuvem, mas a obrigação delles dous não era resistir ao conselho. Quem salva domina sempre. Fracas são as objecções quando se trata de voltar ao Eden. Havia na attitude de Deruchette, imperceptivelmente apoiada em Ebeneser, alguma cousa que fazia causa commum com o que dizia Gilliatt. Quanto ao enigma da presença daquelle homem e das suas palavras que, no espirito de Deruchette em particular, produziam muitas especies de assombro, eram questões á parte. Aquelle homem dizia-lhes: Casem-se. Era claro. Se houvesse uma responsabilidade era elle quem a tomava sobre si. Deruchette sentia confusamente que, por diversas razões, elle tinha o direito de faze-lo. O que elle dizia de mess Lethierry era verdade, Ebeneser pensativo murmurou:

— Um tio não é um pai.

Ebeneser sentia a corrupção de uma peripecia subita e feliz. Os escrupulos provaveis do padre fundiam-se e dissolviam-se naquelle pobre coração apaixonado.

A voz de Gilliatt tomou-se breve e dura; sentia-se nella umas pulsações de febre:

— Immediatamente. O Cashmere parte daqui a duas horas. Tem tempo, mas não de sobra; venham ambos.

Ebeneser examinava-o attentamente.

De subito exclamou:

— Conheço-o. Foi o senhor quem me salvou a vida.

Gilliatt respondeu:

— Não creio.

— Lá adiante, na ponta dos Bancos.

— Não conheço esse lugar.

— No mesmo dia em que cheguei.

— Não percamos tempo, disse Gilliatt.

— E não me engano, o senhor é o homem de hontem á noite.

— Talvez.

— Como se chama?

Gilliatt alçou a voz:

— Ó do bote, espere-nos. Já voltamos. Miss, a senhora perguntou-me porque motivo estava eu aqui, é simples, eu acompanhei-os. A senhora tem vinte e um annos. Nesta terra quem chega a maioridade e depende de si casa-se em um quarto de hora. Tomemos o caminho da praia. Está praticavel, a maré ha de encher lá para o meio dia. Mas vamos já. Venham comigo.

Deruchette e Ebeneser pareciam consultar-se com o olhar. Estavam de pé, juntinhos, sem mecher-se; pareciam ébrios. Ha dessas tentações extranhas á beira desse abysmo que se chama felicidade. Comprehendiam sem comprehender.

— Elle chama-se Gilliatt, disse Deruchette baixinho a Ebeneser.

Gilliatt continuou com uma especie de autoridade:

— Que esperam? Já lhes disse que me acompanhassem.

— Aonde? perguntou Ebeneser.

— Alli.

E Gilliatt mostrou com o dedo a torre da igreja.

Os dous acompanharam-n’o.

Gilliatt ia adiante. O seu passo era firme. Os dous vacillavam.

Á proporção que se approxiraavam da torre, via-se despontar naquelle puros e bellos rostos de Ebeneser e Deruchette alguma cousa que seria dentro de pouco tempo o sorriso. A proximidade da igreja illuminava-os. Nos olhos fundos de Gilliatt haviam trevas.

Dissera-se um espectro levando duas almas ao paraiso.

Ebeneser e Deruchette não comprehendiam muito o que se estava passando. A intervenção daquelle homem era o ramo a que se agarra o affogado. Elles acompanhavam Gilliatt com a docilidade que o desespero tem para com a primeira pessoa que lhe apparece. Quem se sente morrer não é difficil em aceitar os incidentes. Deruchette, mais ignorante, era mais confiante. Ebeneser pensava. Deruchette era maior. As formalidades do casamento inglez são simplissimas, sobretudo nos paizes autochthones onde os parochos tem quasi um poder discricionario; mas o decano celebraria o casamento sem saber se o tio consentia? Havia uma questão nisto. Comtudo, podia-se tentar. Em todo o caso era uma delonga.

Mas quem era aquelle homem? e se era elle quem na vespera, foi declarado genro de mess Lethierry, como explicar o que estava fazendo? Elle, que era o obstaculo, tornava-se a providencia. Ebeneser prestava-se a tudo, mas dava ao que se estava passando o consentimento tacito e rapido do homem que se sente salvo.

O caminho era desigual, ás vezes molhado e difficil. Ebeneser absorto não prestava attenção aos charcos de agua e ás pedras. De quando em quando, Gilliatt, voltava-se e dizia a Ebeneser: Cuidado com essas pedras, dê-lhe a mão.