Os Trabalhadores do Mar/Parte III/Livro III/III

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III.


PREVIDENCIA DA ABNEGAÇÃO.


Soavam dez horas e meia quando elles entravam na igreja.

Por causa da hora, e tambem por causa da solidão da cidade naquelle dia, a igreja estava vasia.

No fundo, porém, perto da mesa que, nas igrejas reformadas, substitue o altar, haviam tres pessoas; eram o decano, o seu evangelista, e mais o lançador dos registros. O decano, que era o reverendo Jaquemin Herodes, estava assentado; o evangelista e o lançador estavam de pé.

O Livro, aberto, estava sobre a mesa.

Ao lado havia outro livro, era o registro da parochia, igualmente aberto, e no qual um olhar attento poderia notar uma pagina escripta de fresco. Uma penna e um tinteiro ficavam ao lado do registro.

Vendo entrar o reverendo Ebeneser Caudray, o reverendo Jaquemin Herodes levantou-se.

— Esperava-o, disse elle. Tudo está prompto.

O decano, com effeito, estava com o habito de officiante.

Ebeneser olhou para Gilliatt.

O reverendo Herodes continuou:

— Estou ás suas ordens, meu collega.

E fez-lhe uma cortezia.

A cortezia não foi nem para a esquerda nem para a direita. Era evidente, pela direcção do raio visual do decano, que, para elle, só Ebeneser existia. Ebeneser era clergyman e gentleman. O decano não comprehendia no seu comprimento nem Deruchette que estava ao lado, nem Gilliatt que estava atraz. Havia no seu olhar um parenthesis em que só Ebeneser era admittido. A manutenção destas distincções faz parte da boa ordem e consolida as sociedades.

O decano continuou com uma amenidade graciosamente altiva:

— Meu collega, faço-lhe o meu duplo comprimento. Morreu-lhe o tio, e o senhor casa-se; fica rico por um lado e feliz por outro. Demais, agora, graças a este vapor que vai ser restabelecido, miss Lethierry tambem é rica, o que eu approvo. Miss Lethierry nasceu nesta parochia, verifiquei a data do nascimento no livro dos assentos. Miss Lethierry é maior e dispõe de si. Depois, seu tio, que é toda a sua familia, consente. Querem casar-se já por causa da viagem, comprehendo, mas sendo este casamento o do cura da parochia, eu quizera mais alguma solemnidade. Abrevio para fazer-lhes o gosto. O essencial póde fazer-se no summario. O acto já está escripto no livro do registro que está aqui, e falta só pôr os nomes. Nos termos da lei e do costume, o casamento pode ser celebrado logo depois da inscripção. A declaração necessaria para a licença já foi feita. Tomo a responsabilidade de uma pequena irregularidade, porque o pedido de licença devia ser previamente registrado sete dias antes; mas eu reconheço a necessidade e a urgencia da partida, Seja. Vou casal-os. O meu evangelista, será a testemunha do esposo; quanto á da esposa...

O decano voltou-se para Gilliatt.

Gilliatt fez um signal de cabeça.

— Basta, disse o decano.

Ebeneser ficara immovel. Deruchette era o extasis petrificado.

O decano continuou:

— Ha porém um obstaculo.

Deruchette fez um movimento.

O decano continuou:

— O enviado de mess Lethierry, que aqui está presente, e pedio a licença e assignou a declaração no registro,—e com o polegar da mão esquerda o decano indicou Gilliatt, o que o isentava de articular nenhum nome,—o enviado de mess Lethierry disse-me esta manhã que mess Lethierry, por muito occupado, não podia vir, e desejava que o casamento se fizesse incontinenti. Esse desejo, verbalmente expresso, não é sufficiente. Não posso, por causa das dispensas e da irregularidade que tomo sobre mim, ir além disto sem imformar-me de mess Lethierry, a menos que não me mostrem a assignatura delle. Qualquer que seja a minha boa vontade, não posso contentar-me com uma palavra que me repetem. Preciso de um escripto.

— Não sirva isso de empecilho, disse Gilliatt.

E apresentou ao decano um papel.

O decano pegou no papel, percorreu com um olhar, pareceu passar algumas linhas, sem duvida, inuteis, e leu alto:

— «...Vai ter á casa do decano para arranjar as dispensas. Desejo que o casamento se faça o mais cedo possivel, e já, será melhor.»

Poz o papel em cima da mesa e continuou:

— Assignado Lethierry. A cousa seria mais respeitosa se fosse dirigida a mim. Mas como se trata de um collega, não exijo mais.

Ebeneser olhou de novo para Gilliatt. Ha almas que se entendem. Ebeneser sentia naquillo uma fraude; e não teve força, não teve mesmo idéa, de denuncial-a. Ou fosse obediencia a um heroismo latente que elle antevia, ou fosse que se lhe aturdisse a consciencia pela ventura subita, Ebeneser não teve palavras.

O decano tomou a penna e encheu, com auxilio do lançador dos assentos, os claros da pagina escripta no livro, depois levantou-se, e com o gesto, convidou Ebeneser e Deruchette, a aproximar-se da mesa.

Começou a ceremonia.

Ebeneser e Deruchette estavam ao pé um do outro diante do ministro. Quem tiver sonhado que se está casando saberá o que elles sentiam.

Gilliatt estava a alguma distancia na obscuridade dos pillares.

Deruchette ao levantar-se da cama, desesperada, pensando no tumulo e no sudario, vestira-se de branco. Esta idéa de morte veio a proposito para as nupcias. O vestido branco fez della uma noiva. Tambem os tumulos são esponsaes.

Deruchette irradiava. Nunca foi o que era naquelle instante. Deruchette tinha o defeito de ser demasiado linda e não bastante formosa. A sua belleza peccava, se é peccar, por excesso de graça. Deruchette em repouso, isto é, fóra da paixão e da dôr, já o dissemos, era sobretudo gentil. A transfiguração da moça encantadora é a virgem ideal. Deruchette, engrandecida pelo amor e pelo soffrimento, tinha tido esse progresso, deixem passar a palavra. Tinha a mesma candura, com mais dignidade, a mesma frescura com mais perfume. Era uma especie de bonina que se torna lyrio.

Tinha no rosto signaes de lagrimas estanques. Havia ainda talvez uma lagrima no canto do sorriso. As lagrimas estanques, vagamente visiveis, são um sombrio e doce ornato da felicidade.

O decano, de pé perto da mesa, poz um dedo na Biblia aberta e perguntou em voz alta:

— Ha opposição?

Ninguem respondeu.

— Amen, disse o decano.

Ebeneser e Deruchette deram um passo para o Rev. Jaquemin Herodes.

O decano disse:

— Joë Ebeneser Caudray, queres esta mulher por tua esposa?

Ebeneser respondeu:

— Quero.

O decano contiunou:

— Durande Deruchette Lethierry, queres este homem por teu marido?

Deruchette na agonia da alma demasiado feliz, como a da lampada demasiado cheia de oleo, murmurou em vez de pronunciar:

— Quero.

Então, segundo o bello rito do casamento anglicano, o decano olhou em roda de si, e fez na sombra da igreja esta solemne pergunta:

— Quem dá esta mulher a este homem?

— Eu, disse Gilliatt.

Houve um momento de silencio. Ebeneser e Deruchette sentiram uma vaga oppressão atravez da sua felicidade.

O decano poz a mão direita de Deruchette na mão direita de Ebeneser, e Ebeneser disse a Deruchette:

— Deruchette, tomo-me por minha mulher, quer sejas melhor ou peior, mais rica ou mais pobre, doente ou com saude, para amar-te ate á morte, e dou-te a minha fé.

O decano pôz a mão direita de Ebeneser na mão direita de Deruchette, e Deruchette disse a Ebeneser:

— Ebeneser, tomo-te por meu marido, quer sejas melhor ou peior, mais rico ou mais pobre, doente ou com saude, para amar-te e obedecer-te até á morte, e dou-te a minha fé.

O decano continuou:

— Onde está o annel?

Isto era o imprevisto. Ebeneser não tinha annel.

Gilliatt tirou o annel de ouro que tinha no dedo minimo e apresentou ao decano. Era provavelmente o annel de casamento comprado de manhã ao ourives de Commercial—Arcade.

O decano pôz o annel no livro, depois entregou-o a Ebeneser.

Ebeneser pegou na mãosinha esquerda, tremula, de Deruchette, metteu o annel no quarto dedo, e disse:

— Desposo-te com este annel.

— Em nome do Padre, do Filho e do Espirito-Santo, disse o decano.

— Assim seja, disse o evangelista.

O decano alçou a voz:

— Estaes casados.

— Assim seja, disse o evangelista.

O decano continuou:

— Oremos.

Ebeneser e Deruchette voltaram-se para a mesa e ajoelharam-se.

Gilliatt que estava de pé inclinou a cabeça.

Elles ajoelhavam-se diante de Deos, Gilliatt curvava-se ao destino.