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A esperança
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Miquelina, via que tinha dito disparate. A menina mostrava anciedade e perturbação. Não se atarantava, porém, a creada com pouca coisa, e queria vêr se distrahia Maria Isabel com a sua localidade. Esta enterrompeu-a, dizendo:

― Quero fallar com sua ama.

― Ella não tardará a vir aos pés de v. exc.a Como lhe disse que v. exc.a já estava de pé, sendo tão fidalga e tão bonita...

― Deixe-me, Miquelina. Eu não sou fidalga, nem bonita.

― V. exc.a não quer olhar para aquelle espelho?

― Quero que faça favor de me deixar.

― Mas não toma outra chavena de chá?

― Não tenho mais vontade... Não quero mais nada.

― V. exc.a não come mais do que um canario! Dê-me licença para lhe dizer uma coisa. Não quer uns sapatos mais anchos?

― Não.

― Perdôe... Cuidei que estaria com o pé apertado. Tem um pezinho tão pequeno e tão perfeito...

― Sou baixa, e portanto tenho o pé proprio do meu tamanho.

― Baixa?!.. V. exc.a é alta; e é tão elegante, e...

― Estou muito triste, para poder ouvir gracejos. Preciso de fallar com sua ama: vá ver se posso ir ao quarto d'ella.

O ar imperioso que tomou a filha de D. Maria Carlota, impoz silencio á bacharelice de Miquelina, que sahiu, dizendo entre dentes:

― Começa a ter modos de fidalga!.. Lembrei-lhe que era bonita!.. A pobre de minha ama nunca havia de ser com ella... fidalga.

Nugas

O inverno escondeu-se no gômo, que a primavera brotou! Ai! a tua saudade, lindo inverno, quebrou-me a alma. Lá vôa o sol, redoirando a nuvem, que tu escurecias, ó fevereiro saudoso.

E eu perguntava á saudade porque era eterna e porque, de preferencia, se assentava nas relvagens do cemiterio do meu coração!

E ella, como a negridez do lençol apodrecido na valla, me apertava funda... dedpois, triste, forte e soturna, como a podridão que roe o impio, aquecia-se e regalava-se do pouco da minha fé, que um seculo sordido e sem promessas tinha devorado.

Porque assim te partiste, minha pobre alma? porque fugiste minha tenra fé?

Para que eu, mesquinho peregrino de dois dias cravasse o meu bordão nas gandaras dos immensos desconfortos e bradasse a meu turno: Lagrimas, meu Deus, para regar de luz a minha alma tisnada da brasa da philosophia!

E foste tu, louca de mil seculos que, como hymno de glorias chumbado nas blasphemias, me fechaste o coração ás aguas da religião e me queimaste, uma por uma, as flôres da vida, que só viça no ambiente do christianismo!

Porisso, eu o desherdado do arrimo e do consôlo, chóro o inverno que se vestia de caligens; choro as nuvens que desazulavam os céos; choro a nueza que toucava os campos!

Era a unica rima que eu achava para o meu existir tão chagado e tão sem paz!

Nunca trouxe o espirito tão sobresalteado de pavores. Nunca a minha alma se encostou tão desmedrada no hombro da angustia. Nunca a pua do desalento espinhou o meu seio tão no intimo!

Pedi a Deus que me desse orar fervido e que derramasse nos meus labios a prece do atribulado. A minha alma desceu da cabeça ao coração. Quando passou o purgatorio das lagrimas, pôde soluçar consolada:

«Oh! Christo, hoje que a philosophia morreu