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A esperança
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insomnia dolorosa, proveniente do recolhimento e tristeza, em que se consumia o seu espirito, Henrique veio para o jardim, como a procurar entre as flores aquella d'onde podesse haurir o balsamo para as suas magoas. Em casa de Jeronymo de Vasconcellos todos repousavam n'esse momento, e tudo era profundo silencio. De repente um grito aterrador de ― incendio! ― veio ferir os ouvidos de Henrique, que parecia enlevado na contemplação das estrellas ou do infinito. Veloz como o raio, Henrique vôa a empregar a sua coragem em prol d'aquelles, cuja vida estivesse em perigo. O seu primeiro pensamento foi o de correr ao quarto de Maria, que, de joelhos e sem accordo diante d'um crucifixo, esperava que a morte assim a levasse perante o throno do Altissimo.

A lavareda sobrelevava já em parte os tectos da casa, cuja vista era terrivel. Henrique, porém, não desespera, porque o amor lhe dá forças, e animado d'um esforço sobrenatural, eil-o atravessa as chammas que pareciam abrir-se, como os soldados dando passagem ao guerreiro denodado que vôa a colher a palma da victoria. O incendio que então se levantara em sua alma era mais poderoso que aquelle contra que luctava.

O inimigo foi vencido, e Maria posta nos braços de seu pae, como despojos do combate.

Não há palavras que pintem a alegria e a commoção de Jeronymo de Vasconcellos ao encarar em Maria, livre de perigo. Desde logo resolveu unil-a para sempre a Henrique, o salvador de sua filha; o que se realisou d'ahi a pouco tempo, entre muita alegria e festas da gente da aldeia, onde ainda se conserva memoria dos amores que tiveram aquelles dois corações, palpitantes de verdade e singeleza.

H.M.

Eremita

Joven, se és desgraçado, melhor pódes
Tambem d'um desgraçado apiedar-te!
A vida se me esvae!... ouve-me, ó filho:
― Era em tempo, em que os francos opprimidos,
Gemiam sem fruirem liberdade;
Mas eu, senhor feudal, fazia parte
D'oppressores que a patria 'scravisavam;
De nobresa ostentando um futil titulo
E do rei o favor gosando ufano,
Orgulhoso, egoista, não soffria
Que fosse mais que eu, outro exaltado:
Votei odio, inveja ao cavalheiro
Mais nobre, denodado e virtuoso,
Tecendo-lhe a mais vil, atroz calumnia!
E do rei a má indole accendendo,
Contra o triste o tornei enfurecido:
Foi preso o desgraçado e condemnado
A' existencia fruir longe da patria,
Sendo-lhe bens, thesouros confiscados!
Mas est'alma feroz, implacavel,
Contente inda não 'stava co'a má sorte
Que sobre esse innocente já pesava
E temendo que um dia a sã verdade,
Altiva se mostrasse contra mim,
Uma idéa infernal passou na mente
Que o coração perverso não baniu,
E das trevas o Genio vendo entrada.
N'um 'spirito d'inveja como o d'elle,
Armou-me d'um punhal a dextra infame,
E a vida, que tirar a Deus só cabe,
Eu a extingui ao triste, sem piedade!...