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A REVISTA

Nesta edade em que para Tertuliano tudo era mysterio, sua familia entrou em delirio mystico com um presente que seu pae recebera de um arcebispo, vindo de Roma. O presente era um milagroso barrete de S. Cornelio que, além das virtudes inherentes ás cousas de Santos, curava dores de cabeça. Tertuliano tinha uma crença inabalavel no barrete. Ficava, ás vezes, em extase, contemplando aquelle pedaço de velludo esgarçado e sujo, sem que viesse á sua intelligencia a menor duvida a respeito de milagres.

O barrete foi applicado, com maravilhosos resultados, a toda a familia. Como Tertuliano, soffria de enxaquecas, não tardou em experimentar o infallivel remedio. A familia reunida constatou mais uma vez o poder de Deus e dos Santos. Tertuliano, que estava excitadissimo, declarou, logo depois que lhe foi collocado o barrete, ter desapparecido a dôr. Mas o certo é que a dôr não havia desapparecido; elle dissera que sim, por acreditar mais em milagres do que em si.

Passados uns dias, nova applicação. Reune-se a familia. Apezar de já estar durante dez minutos com o barrete na cabeça (tempo bastante para despertar vaidade ao proprio Deus), a dôr não se ia embora. Tertuliano começou a achar ridiculo aquelle quadro, em que elle, sentado em uma cadeira alta e de barrete vermelho na cabeça, tinha toda a familia ajoelhada deante de si. Decorrida meia hora, Tertuliano disse ao pae que a dôr continuava. O pae e toda familia indignaram-se, chegando a chamal-o de mentiroso. Desde então passaram a tratal-o com o maximo rigor, castigando-o com frequencia. A fé costuma cegar mesmo os paes. Tertuliano, do mesmo modo que não o acreditavam, passou a não acreditar em milagres. Não podemos penetrar os seus pensamentos, mas a verdade é que Tertuliano perdeu a fé. Elle costumava dizer que o symbolo mais sombrio era o de um homem, orando de joelhos.

Como o destino é ironico e confuso, fel-o medico. Hoje, Tertuliano acredita nas drogas.


SIMÃO, O MATHEMATICO

Eramos companheiros nas aulas de mathematica, não sò nas aulas, mas em tudo, pois a nossa amizade nos unia desde pequenos. Simão, tendo começado os estudos commigo, e tambem por sermos da mesma terra, nutria por mim um sentimento de amizade eu, somente, de camaradagem.

Não digo que era amizade, porque Simão tinha, de mim, uma certa desconfiança. Isto não o soube por elle. que certo se aca-