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A CIDADE E AS SERRAS

Eu encomendara pelo Grilo ao nosso magistral cozinheiro uma larga travessa de arroz doce, com as iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da nossa meiga terra. E o meu Principe à mesa, percorrendo a lâmina de marfim onde no 202 se escreviam os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor a ideia patriarcal:

— Arroz doce! Está escrito com dois ss, mas não tem dúvida... Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz doce! Desde a morte da avó.

Mas quando o arroz doce apareceu triunfalmente, que vexame! Era um prato monumental, de grande arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egipto, emergia duma calda de cereja, e desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma coroa de Conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingénua, vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato acanalhado. E Jacinto, erguendo o copo de Champanhe, murmurou como num funeral pagão:

Ad Manes, aos nossos mortos!

Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café no conchego e alegria do lume. Fora, o vento bramava como num ermo serrano; e as vidraças tremiam, alagadas, sob as bátegas da chuva irada. Que dolorosa noite para os dez mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na minha aldeia, entre cerro e vale, talvez assim rugisse a tormenta. Mas aí cada pobre, sob o abrigo da sua telha vã, com a sua panela atestada de couves,

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