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A CIDADE E AS SERRAS

Príncipe para um mês de serra áspera — camas de pena, banheiras de níquel, lâmpadas Carcel, divãs profundos, cortinas para vedar as gretas rudes, tapetes para amaciar os soalhos broncos. Os sótãos, onde se arrecadavam os pesados trastes do avô Galião, foram esvaziados — porque o casarão medieval de 1410 comportava os tremós românticos de 1830. De todos os armazéns de Paris chegavam cada manha fardos, caixas, temerosos embrulhos que os emaladores desfaziam, atulhando os corredores de montes de palha e de papel pardo, onde os nossos passos açodados se enrodilhavam. O cozinheiro, esbaforido, organizava a remessa de fornalhas, geleiras, bocais de trufas, latas de conservas, bojudas garrafas de águas minerais. Jacinto, lembrando as trovoadas da serra, comprou um imenso pára-raios. Desde o amanhecer, nos pátios, no jardim, se martelava, se pregava, com vasto fragor, como na construção duma cidade. E o desfilar das bagagens, através do portão, lembrava uma página de Heródoto contando a marcha dos Persas.

Das janelas, Jacinto, com o braço estendido, saboreava aquela actividade e aquela disciplina:

— Vê tu, Zé Fernandes, que facilidade!... Saímos do 202, chegamos à serra, encontramos o 202. Não há senão Paris!

Recomeçara a amar a Cidade, o meu Príncipe, enquanto preparava o seu Êxodo. Depois de ter, toda a manhã, apressado os encaixotadores, descortinado confortos novos para o abandonado solar, telefonado gordas listas de encomendas a cada loja de Paris — era com delícia que se vestia, se perfumava, se floria, se enterrava na vitória ou

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