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A CIDADE E AS SERRAS

da silvestre Tormes interrompessem a ilimitada acumulação das noções — porque uma manhã rompeu pelo meu quarto, desolado, gritando que entre tantos confortos e formas de Civilização esquecêramos os livros! Assim era — e que vexame para a nossa Intelectualidade! Mas que livros escolher entre os facundos milhares sob que vergava o 202? O meu Príncipe decidiu logo dedicar os seus dias serranos ao estudo da História Natural — e nós mesmos, imediatamente, deitámos para o fundo dum vasto caixote novo, como lastro, os vinte e cinco tomos de Plínio. Despejámos depois para dentro, às braçadas, Geologia, Mineralogia, Botânica... Espalhámos por cima uma camada aérea de Astronomia. E, para fixar bem no caixote estas ciências oscilantes, entalámos em redor cunhas de Metafísica.

Mas quando a derradeira caixa, pregada e cintada de ferro, saiu do portão do 202 na derradeira carroça da Companhia dos Transportes, toda esta animação de Jacinto se abateu como a efervescência num copo de Champanhe. Era em meados já tépidos de Março. E de novo os seus desagradáveis bocejos atroaram o 202 e todos os sofás rangeram sob o peso do corpo que ele lhe atirava para cima, mortalmente vencido pela fartura e pelo tédio, num desejo de repouso eterno, bem envolto de solidão e silêncio. Desesperei. O quê! Aturaria eu ainda aquele Príncipe palpando amargamente a caveira, e, quando o crepúsculo entristecia a Biblioteca, aludindo, num tom rouco, à doçura das mortes rápidas pela violência misericordiosa do ácido cianídrico? Ah não, caramba! E uma tarde em que o encontrei estirado

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