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A CIDADE E AS SERRAS

tormento... Se o trem de Salamanca tivesse abalado? O salão, tomado até Medina, desengatava em Medina: — e eis os nossos preciosos corpos, com as nossas preciosas almas, despejados em Medina, para cima da lama, entre vinte e três malas, numa rude confusão espanhola, sob a tormenta de ventania e de água!

— Oh, Zé Fernandes, uma noite em Medina! Ao meu Príncipe aparecia como desventura suprema essa noite em Medina, numa fonda sórdida, fedendo a alho, com gordas filas de percevejos através dos lençóis de estopa encardida!... Não cessei então de fitar, num desassossego, os ponteiros do relógio: — enquanto Jacinto, pela vidraça escancarada, todo fustigado da chuva clamorosa, furava a negrura, na esperança de avistar as luzes de Medina e um comboio paciente fumegando... Depois recaía no divã, limpava os bigodes e os olhos, maldizia a Espanha. O trem arquejava, rompendo o vasto vento da planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?... Não! Algum sumido apeadeiro, onde o trem se atardava, esfalfado, resfolgando, enquanto dormentes figuras encarapuçadas, embrulhadas em mantas, rondavam sob o telheiro do barracão, que as lanternas baças tornavam mais soturno. Jacinto esmurrava o joelho: — «Mas por que pára este infame comboio? Não há tráfico, não há gente! Oh esta Espanha!...» A sineta badalava, moribunda. De novo fendíamos a noite e a borrasca.

Resignadamente comecei a percorrer um Jornal do Comércio, antigo, trazido de Paris. Jacinto esmagava o espesso tapete do salão com passadas

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