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A CIDADE E AS SERRAS

as largas estantes de ébano da Biblioteca, onde os trinta mil volumes, nobremente enfileirados como Doutores num Concílio, pareciam separados do mundo por aquele pano que sobre eles descera depois de finda a comédia da sua força e da sua autoridade. No gabinete de Jacinto, de sobre a mesa de escrita, desaparecera aquela confusão de instrumentozinhos, de que eu perdera já a memória; e só a Mecânica sumptuosa, por sobre peanhas e pedestais, recentemente espanejada, reluzia, com as suas engrenagens, tubos, rodas, rigidezes de metais, numa frieza inerte, na inactividade definitiva das coisas desusadas, como já dispostas num Museu, para exemplificar a instrumentação caduca dum mundo passado. Tentei mover o telefone, que se não moveu; a mola da electricidade não acendeu nenhum lume: todas as forças universais tinham abandonado o serviço do 202, como servos despedidos. E então, passeando através das salas, realmente me pareceu que per- corria um museu de antiguidades; e que mais tarde outros homens, com uma compreensão mais pura e exacta da Vida e da Felicidade, percorreriam, como eu, longas salas, atulhadas com os instrumentos da Supercivilização, e, como eu, encolheriam desdenhosamente os ombros ante a grande Ilusão que findara, agora para sempre inútil, arrumada como um lixo histórico, guardado debaixo da lona.

Quando saí do 202 tomei um fiacre, subi ao Bosque de Bolonha. E apenas rolara momentos pela Avenida das Acácias, no silêncio decoroso, unicamente cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a areia, comecei a

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