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A CIDADE E AS SERRAS

um escravo tardio. E mal enxugado, dentro do seu roupão de pêlo de cabra do Tibete ou de grossos pijamas de pelúcia cor de ouro-velho, constantemente saía ao corredor a cochichar com sujeitos tão apressados, que conservavam na mão o guarda-chuva pingando sobre o tapete. Um desses, sempre presente (e que pertencia decerto aos Telefones de Constantinopla), era temeroso — todo ele chupado, tisnado, com maus dentes, sobraçando uma enorme pasta sebenta, e dardejando, de entre a alta gola duma peliça puída, como da abertura dum covil, dois olhinhos torvos e de rapina. Sem cessar, inexoravelmente, um escudeiro aparecia, com bilhetes numa salva... Depois eram fornecedores de Indústria e de Arte; negociantes de cavalos, rubicundos e de paletó branco; inventores com grossos rolos de papel; alfarrabistas trazendo na algibeira uma edição «única», quase inverosímil, de Ulrich Zell ou do Lapidanus. Jacinto circulava estonteado pelo 202, rabiscando a carteira, repicando o telefone, desatando nervosamente pacotes, sacudindo ao passar algum emboscado que surdia das sombras da antecâmara, estendia como um trabuco o seu memorial ou o seu catálogo!

Ao meio-dia, um tanta argentino e melan- cólico ressoava, chamando ao almoço. Com o Figaro ou as Novidades abertas sobre o prato, eu esperava sempre meia hora pelo meu Príncipe, que entrava numa rajada, consultando o relógio, exalando com a face moída o seu queixume eterno:

— Que maçada! E depois uma noite abominável, enrodilhada em sonhos... Tomei sulfonal,

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