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A CIDADE E AS SERRAS

empurrada levemente, o criado avançou a face nédia. Ordenei uma lagosta, pato com pimentões, e Borgonha. E foi somente ao findarmos o pato que me ergui, amarfanhando convulsamente o guardanapo, e a tremer lhe beijei a boca, todo a tremer, num beijo profundo e terrível, em que deixei a alma, entre saliva e gosto de pimentão! Depois, numa tipóia aberta, sob um bafo mole de leste e de trovoada, subimos a Avenida dos Campos Elísios. Em frente à grade do 202 murmurei, para a deslumbrar com o meu luxo: — «Moro ali, todo o ano!…» E como ao mirar o Palacete, debruçada, ela roçara a mata fulva do pêlo crespo pela minha barba — berrei desesperadamente ao cocheiro que galopasse para a rua do Hélder, n.° 16, quarto andar, porta à esquerda!

Amei aquela criatura. Amei aquela criatura com Amor, com todos os Amores que estão no Amor, o Amor divino, o Amor humano, o Amor bestial, como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava Julieta, como um bode ama uma cabra. Era estúpida, era triste. Eu deliciosamente apagava a minha alegria na cinza da sua tristeza; e com inefável gosto afundava a minha razão na densidade da sua estupidez. Durante sete furiosas semanas perdi a consciência da minha personalidade de Zé Fernandes — Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava ser um pedaço de cera que se derretia, com horrenda delícia, num forno rubro e rugidor; ora me parecia ser uma faminta fogueira onde flamejava, estalava e se consumia um molho de galhos secos. Desses dias de sublime sordidez só conservo a impressão duma alcova forrada de

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