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Página:A infanta D. Maria de Portugal e suas damas.djvu/14

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da obra prima do amor feminino, nem das creaturas de alma voluptuosamente apaixonada, olhos, gestos e dizeres de creança que os poetas immortalizaram, como a Maria de Christovam Falcão, a das lagrimas doces; a Menina e Moça dos olhos verdes que enfeitiçou o romantico Bernardim Ribeiro; a Natercia de Camões, cabeça de ouro e neve figuras que em qualquer Pantheon moderno de notabilidades femininas hão de forçosamente constituir uma categoria á parte, e não a menos interessante e suggestiva.[1]

Ha muito que penso num tal Pantheon e junto materiaes para o construir.

As biographias que vou esboçar não foram todavia subordinadas a nenhum plano geral. Surgiram ao acaso: a primeira, a pedido dos editores do Plutarco Português,[2] a segunda para o jornal A Arte Portuguesa.[3] Ambas apparecem agora retocadas. Creio porém que mais tarde ainda terão de soffrer alterações sensiveis, a fim de entrarem num conjuncto mais vasto, e tambem porque ha subsidios ineditos que até hoje não me foi dado explorar. Determinou a escolha em ambos os casos um detalhe exterior, mas muito importante ― a subsistencia de retratos coevos, authenticos.



A Infanta D. Maria é figura digna de attenção debaixo de varios aspectos.

De sangue real, herdeira da corôa, se não morresse um anno antes da catastrophe de Alcacer-Quebir, pertence á historia e teve biographos conscienciosos.[4]

Em criança e na flôr da idade viu refulgir diante de seus olhos a corôa de França; foi escolhida repetidas vezes para o throno imperial ― orbis destinata imperio ― e outras tantas para o imperio de Hespanha. Acariciando sempre, no intimo do coração, este ultimo projecto, ficou ainda assim innupta, uma triste sempre-noiva. Este estado tragicomico que lhe foi imposto, mas que a final aceitou com sublime altivez, apparentando tê-lo escolhido livremente, despertou a dolente sympathia dos coevos.[5] E ainda hoje é capaz de suscitar a dos posteros.

Latina, blas-bleu, ou antes virago, no nobre sentido que a Renascença italiana deu ao malvisto palavrão,[6] faz excepção á regra commum, tomando logar na tribuna pouco povoada das eruditas portuguesas. Coarcta tambem neste caso pela educação que lhe deram, não renegou, mas antes aceitou, submissa e grata, essa sorte4

  1. Ignoro, se estava destinado a retratar essas inspiradoras un trabalho do poeta Luis de Palmeirim sobre A Mulher Portuguesa, varias vezes annunciado, e, subvencionado pelo estado, se não me engano, mas que nunca sahiu á luz.
  2. Plutarcho Portugues, Collecção de Retratos e Biographia dos principaes vultos historicos da civilisação portuguesa, Porto, 1882.
  3. A Arte Portugueza (Lisboa 1895) teve de recolher, infelizmente, após seis clangorosos toques de rebate.
  4. A lista dos auctores que se occuparam da Infanta é muito extensa. Citarei aqui apenas tres dos mais importantes, a que me refiro repetidas vezes neste estudo. O primeiro que emprehenden traçar o seu simile, ainda durante a sua vida, foi o historiador João de Barros num Panegyrico extensissimo, de 80 capitulos. Escripto quando D. João III a fez duquesa de Viseu, creio que em 1555, a obra sahiu ao cabo de um seculo, com as Noticias de Portugal de Severim de Faria (1655); novamente em 1675 (isto é intercalado na obra que consignarei em segundo logar), e ainda em 1740 e 1791. Com muito mais desenvolvimento tratou d'ella o historiador Frei Miguel Pacheco. O volume, amplamente documentado que lhe dedicou em castelhano — Vida de la Serenissima Infanta D. Maria (Lisboa, 1675) — consta de 204 folhas. — Nos nossos dias, o Conde de Villa-Franca publicou uns apontamentos que chama extractos de um estudo inedito, mas que a meu vêr constituem apenas um primeiro esboço de um livro projectado. Nelle ha alguma novidade, mas tambem muitas inexactidões. E' a Nota H do volume sobre D. João e a Alliança Ingleza, Lisboa, 1884.
  5. Riquezas, que costuman apressar casamentos, impediram-os no caso da Infanta, com espanto do publico, não iniciado nas machinações politicas. Variis casibus innupta (o que, bem interpretado, quer dizer: solteira por força maior ou considerações machiavellicas) ― joven que nunca teve dita para casar, sendo grande senhora ― eis o estribilho repetido pelos poetas, durante a sua vida e depois da sua morte, conforme o leitor verá.
  6. André de Resende, um dos admiradores mais enthusiasticos da sabia Infanta, chamou-a directamente animosa virago, em allocução solemne, perante a Academia reunida. Cf. Nota 59.