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Página:A infanta D. Maria de Portugal e suas damas.djvu/13

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com symbolismo transparente, no epitaphio inscripto na pedra tumular de Claudia Romana:

Casta vixit — domum servavit — lanam fecit.

Viveu casta — guardou o lar — e fiou la[1]

Na Allemanha dictam leis e ordenam imperativamente: a casa — esse é o teu dominio. Die Frau gehört ins Haus.

Em Portugal temos a mesma noção esthetica, modificada todavia em sentido catholico pelo christianismo peninsular. Sómente é discreta a que é santa, ou no seu teor original: solo es discreta quien es santa, visto que o engenhoso e agudo auctor da Arte de Galantaria preferiu a lingua castelhana á falla de seus avôs.

Fazendo sua esta ultima definição, os escriptores dos seculos XVII e XVIII que se occuparam da mulher portuguesa — no Theatro Heroino[2] — Jardim de Portugal[3] — Portugal illustrado pelo sexo feminino[4] — Flores de Hespanha[5] — Retratos e Elogios[6] — e quantas mais obras subsistem com titulo e caracter semilhante — retocaram em geral as feições das que floresceram em letras e armas, num fundo uniforme com pincel muito ascetico, pelo systema a que já alludi.

Cortando saliencias, calando defeitos e erros, dissimulando fraquezas e paixões, pondo em relevo exclusivamente feitos e ditos que abonam bons costumes (dando invariavelmente no fim a lista das obras pias, doações a igrejas, fundações de conventos, esmolas á pobreza, praticas devotas) facilitam a idealização, a classificação, mas privam-nos dos elementos necessarios para o desenho de quadros historicamente fieis, coloridos ao vivo, conformes à realidade. Assim dão a entender que louvores em summo grau são devidos não á mulher que sahiu da volgare schiera pelo esplendor da vida, dotes de espirito, formosura, manifestações de talento, genio ou actos de civismo; nem, como na concepção germanica, áquella que cultiva com desvelo, em volta do lar, virtudes domesticas; mas pelo contrario, que antepõem a todos os deveres a sua devoção. A's que sujeitando ás suas aspirações à condição severa de uma vida essencialmente de sacrificio, se dedicam á mais abstracta das obras de misericordia, rezando e mortificando-se por bens da sua alma e mais peccadores, gastando s suas forças vivas em exercicios espirituaes, occultas na penumbra o convento. A' mulher santa, virgem e freira — ou freiratica.

Solo es discreta quien es santa.

Dos seus Theatros e das suas Galerias ficaram excluidas por isso mesmo as entidades abertamente más, as naturezas problematicas, e as mulheres fataes, sem outra culpa que não seja o seu encanto feminil. Não quiseram saber das grandes exaltadas, peculiarmente caras aos investigadores modernos, como Soror Marianna, auctora

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  1. E' admiravel a arte com que o sempre practico Romano condensou, em seis palavras, todo um programma de economia domestica.
  2. Damião de Froes Perim (anagramma de Frei João de S. Pedro), Theatro Heroino, abecedario historico e catalogo das mulheres illustres em armas, lettras, acções heroicas e artes litterarias, Lisboa, 1780.
  3. Frei Luis dos Anjos, Jardim de Portugal, Coimbra, 1626.
  4. Padre Manuel Tavares (servindo-se do nome de seu irmão Diogo Manuel Ayres de Azevedo), Portugal illustrado pelo sexo feminino, Noticia historica de muitas heroinas portuguesas que floresceram em virtudes, lettras e armas, Lisboa, 1735.
  5. Antonio de Sousa de Macedo, Flores de España, Excellencias de Portugal, 1631 e 1737.
  6. Retratos e Elogios dos Varões e Donas que illustraram a nação portugueza, 1806-1817. — Publicação promovida por Pedro José de Figueiredo (de cuja penna são as biographias na maior parte), em collaboração com Luis Duarte Villela da Silva, José da Cunha Taborda, e outros. — Cumpre-me citar ainda o Gynecæum Hispana Minerva sive de gentis nostra foeminis doctrina claris ad Bibliothecam Scriptorum, compilado por Nicolas Antonio e impresso no vol. II da Bibliotheca Hispana Nova (1672). Tambem são dignos de menção os capitulos que o consciencioso Desembargador Duarte Nunes de Leão dedicou ás mulheres lusitanas, na sua Descripçam de Portugal. No Cap. 88.o trata: Da honestidade e recolhimento das molheres portuguesas e de suas perfeições. No Cap. seguinte: Do valor e ensino das molheres portuguesas. No 90.o: Da habilidade das molheres portuguesas para as lettras e artes liberaes.