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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

A associação entre movimento/ruído e perturbação dos deuses parece uma concepção tipicamente babilônica — que não encontra paralelo, por exemplo, entre gregos, hititas e outros povos que habitam a mesma zona de convergência cultural. O tema do sono divino, contudo, deixou rastros entre os hebreus, em geral não no sentido de que Yahweh quer dormir e não pode, mas afirmando-se que ele deve ser despertado (cf. MROZEK; VOTTO, 1999, p. 419).

É especialmente interessante que o motivo da gritaria humana que impede um deus de dormir se encontre em encantamentos destinados a fazer cessar o choro de bebês. Assim, por exemplo,

Encantamento: O bebê que faz nervoso seu pai,
Nos olhos de sua mãe põe lágrimas
Com sua gritaria, com a gritaria de seu choro,
Kusarikku ficou assustado e Ea acordou.
Ea acordou e não consegue dormir,
Ishtar não pega no sono! (apud OSHIMA, 2014, p. 280)


Versos 41-46: A função desse desfecho parece ser resguardar Tiámat, atribuindo-se inteiramente a Apsu a responsabilidade dos próximos acontecimentos. De qualquer modo, não deixa de ser surpreendente que Tiámat, de quem a algazarra dos deuses especialmente perturba as entranhas (não se afirma isso com relação a Apsu), seja justamente quem recusa qualquer tipo de ação (ao contrário do que acontecerá depois). A diferença de atitude estaria em que, aqui, apenas Apsu se sente perturbado, ao passo que, mais à frente, será um conjunto de deuses que se dirigem a Tiámat, como seus filhos, pedindo providências para fazer cessar o flagelo do movimento provocado pelos ventos no interior dela, movimento que não os deixa dormir, enchendo-os de fadiga, os olhos estropiados. Seja como for, é significativo que o narrador afirme que a cólera de Tiámat decorre do fato de Apsu ter-lhe lançado "maldade" (lemuttu) nas entranhas.


Talon interpreta que, com uggugat ēdiššiša ("enraivecida ela só", v. 43), o texto dá a entender que Apsu e Múmmu partiram e que Tiámat foi deixada sozinha. A ser assim, a pergunta "Por que nós o que