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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

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engendramos destruiríamos?", bem como o conselho que se segue, "Sua conduta é molesta? Suportemos benignos!", não seriam dirigidos aos dois (ou em especial a ele, Apsu), mas representariam uma reflexão dela consigo mesma: "deixada só, ela termina por acalmar-se e decidir não fazer nada, apesar do mal que lhe fizeram as palavras de Apsu". Essa mudança de cena esclareceria como, na passagem que imediatamente segue, Múmmu se dirige a Apsu supondo que ambos se encontrem sozinhos (TALON, 1992, p. 7-8).

Observe-se que a introdução do discurso direto de Tiámat é especialmente longa — quatro versos introdutórios para apenas dois de fala —, o que tem como resultado reforçar a importância do que ela diz (cf. VOGELZANG, 1990, p. 56 et passim). Também Talon, que divide o poema em quadras, observa que os dois versos com a fala de Tiámat impõem uma quebra no esquema quaternário, tendo como resultado ampliar seu efeito: "Nesses dois versos, Tiámat lança, de qualquer modo, um apelo à estabilidade. A ruptura do estilo sublinha esse fato, põe-no em evidência e tem um aspecto dramático certeiro" (TALON, 1992, p. 8).


Versos 47-78: O relato da derrota de Apsu constitui passagem estreitamente conexa com a anterior (v. 21-46), pois em ambas o que se narra é a saga deste deus. Considerando ambos os trechos, o que logo se constata é que se trata de episódio bastante curto (58 versos), todavia, abordando acontecimentos de enorme importância tanto do ponto de vista de suas conexões internas quanto externas.


Desta última perspectiva, fica evidente o caráter etiológico da narrativa. Antes de ser personagem do poema, Apsu tem o estatuto cósmico apontado antes — a massa de água sobre o qual a terra se assenta, noutros termos, ao lado do céu e da superfície da terra, ele é o terceiro elemento da geografia cósmica, bem como — recorde-se mais uma vez — é a morada de Ea, que divide o cosmo com Ánu (a quem cabe o céu) e com Énlil (que domina a superfície da terra). Assim, é evidente a intenção etiológica do poeta: ele visa a esclarecer por que e como Apsu, o protodeus, terminou por ser o Apsu, lugar cósmico; e porquê e como o Apsu coube ao deus Ea.