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O ESPIÃO ALLEMÃO

co relâmpago lucilou-lhe no cerebro: espião!. Sobresteve a alma aos pinotes, meditou três segundos e, como flecha do patriotismo despedida do arco da salvação publica, voou á casa do coronel José Pedro, já na paz dos lençóis áquell'hora. Leão Lobo bateu na vidraça freneticamente, três, quatro, cinco vezes. O coronel apareceu de chambre, gorro de lã e vela na mão — assustadíssimo.

— Que é lá?

— Espiões na terra, coronel!...

O pobre homem, mal acordado, estremeceu da base ao topo num dos maiores abalos de sua vida. Engasgou. Tartamudeou. E ao termo de uns segundos de tonteira pôde apenas murmurar em voz débil um imperceptível — «Entre!» imperceptivel. A porta abriu-se e Leão Lobo entrou.

— Com que então, espiões?... — disse o coronel, de olho arregalado.

— E dos peores! D´aquelles, coronel!...

A entonação do «d´aquelles» foi tão impressionadora que José Pedro se encostou á parede para conservar o aprumo coronelicio. A situação era de tal modo imprevista que o chefe não sabia como agir. Salvou-o Leão Lobo, affeito a lidar com charadas e logogriphicos dos mais crespos.

— Coragem, coronel! O momento não é para vacillações. Proponho que se desperte Ventania, que se mobilize o «Frei Gaspar», mais o destacamento policial, e que se monte guarda rigorosa ás sahidas da cidade durante o resto da noite. Amanhã, engaiola-se o melro!

— Bem ponderado! — exclamou o chefe, já mais seguro de si. — Vá você mesmo avisar os homens, emquanto eu...

Leão Lobo, sem esperar o fim, saiu aos pinotes, emquanto o coronel... emquanto o coronel voltava para a cama bastante apprhensivo.

— A gente tão «socegado» aqui e aquelle raio da Allemanha...

— Que foi? — indagou a mulher num bocejo.

— Espiões na terra, Candoca! Raios de espiões!

D. Candoca era um poço de bom senso. Disse apenas:

— O que me admira é vocês andarem pela cabeça daquelle bódinho e virando-se para o canto, adormeceu.

Leão Lobo acordou Ventania e o delegado. Horas depois o destacamento policial — um cabo e dois praças — mais o Tiro inteiro estavam em pé de guerra, com grande pavor de varias mulheres despenteadas que á janela, em camisa, punham as mãos, invocando as varias Nossas Senhoras adequadas ao lance — que aquilo era por certo o fim do mundo.

Não era noite de lua e como os lampiões não se accendessem havia mezes, por precaução contra os zeppelins mortíferos, o escuro era de breu. Mesmo assim ás apalpadelas as forças mobilizadas agiram com tal estratégia que, tres horas após o rebate, todas as saídas de Itaoca estavam hermeticamente sentinelladas. Numa delas ficou metade do «Frei Gaspar» com a Flaubert á frente. A outra metade conseguiu munir-se de uma velha garrucha de dois canos, carregada de chumbo Paula-Souza. A senha era impiedosa: não deixar passar viv'alma loura ou ruiva; em caso de resistência, fogo de barragem!

Não passou ninguém, afóra o Vinagre, cachorro veadeiro do Pimenta, o qual, como o seu dono, tinha inventerados habitos noturnos.