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O ESPIÃO ALLEMÃO
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em praça de guerra e varreram do coração das meninas todos os rivaes civis. Era de vel-os passar, garbosos, em marcha cadenciada, sob o corisco dos olhares languidos das Sinházinhas e Mariquitas janelleiras... Da pobre ralé de paletó sacco e palheta salvou-se um ou outro, de rubi no dedo. Venus sempre doidinha por Marte...

O armamento requisitado ao Ministerio da Guerra para o «Frei Gaspar», apesar de promettido, nunca chegou a Itaóca. Não obstante, exercitavam-se os voluntarios com uma Flaubert passarinheira do Pimenta. Aos sabbados, na séde da linha, compareciam os vinte heroicos atiradores e cada um dava seu tirozinho na lata de marmelada posta como alvo a vinte passos de distancia. A munição, porém, encareceu. As balas chegaram ao preço absurdo de cem réis por cabeça. Era um desperdicio gastar vinte cada semana para transformar lata velha em crivo. D'ahi veiu a grande idéa do major Ventania, commandante superior do «Frei Gaspar». Ponderou elle: alvo por alvo, tanto faz uma lata como um passarinho ora, mirando passarinhos, o atirador exercita-se da mesma maneira e sempre apanha um ou outro, com proveito duplo — do treino e do jantar. Sendo assim, não é mais logico aproveitarem-se as vinte balas semanaes no pomar, em caçada ás rolinhas, sabiás e sanhaços? Sensata que era a idéa, foi lógo posta em pratica, eo exercicio de tiro ficou reorganizado deste modo: cada domingo a Flaubert e vinte bajas eram entregues a dois voluntarios para caçarem onde lhes aprouvesse, sob a condição de repartirem a caça abatida com Ventania, pae da idéa mãe e muito guloso de arroz com passarinho. O major deu-lhes ainda um conselho de alta estrategia culinaria:

— Deem preferencia ás rolinhas: são mais carnudas que os sanhaços. Quanto aos sabiás, não me parece patriotico atirar nos rouxinóes de Gonçalves Dias — além de que a came não vale nada...

Este mirifico systema deu resultado triplice: desbaste nas laranjas e passarinhos pomareiros, muita precisão nos tiros dos rapazes e engorda do major. Dois não caberão, mas tres proveitos cabem nos saccos de Itaóca.

Apurado o seu apparelho de defeza, Itaóca dormiu socegada, á espera do inimigo. Viessem os barbaros germanicos e cairiam ceifados como rolinhas!

Não foram tolos. Não vieram. Não veiu um ublano siquer. Mas que a Allemanha pôz o seu olho de aguia em Itaóca não resta a menor duvida. Aqui muito á puridade o confessamos hoje: andaram espiões por lá!

— ???!!!!

— Sim, espiões, e dos peores. Andaram rondando a cidade, tomando plantas, tirando desenhos... Agora que se acabou a guerra, é permittido confessar o facto. Antes, não: porisso foi o segredo guardado religiosamente pelas autoridades locaes, pelo Leão Lobo e até pelas mulheres, tão palreiras. Nobilissimo povo de Itaóca! Quantos males não poupou ao paiz a tua sevéra discreção!...

Foi assim o caso. Leão Lobo safa da chimbica do costume em casa do Pimenta, ás onze da noite, quando, no largo da matriz, cruzou com um vulto desconhecido, ruivo de cabellos, maltrapilho, ar suspeitissimo e trouxa mais suspeita ainda sobraçada. Um propheti-