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COISAS DO MEU DIÁRIO

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gre, a cantarolar que afinal de contas a vida é boa. E dessa forma escapam todos ao cansaço da mesmice.

A FOLHINHA

A folhinha inventou-a algum boticario do «interior» para uso da sua cidadezinha, onde correm dias tão eguaes e parecidos uns com outros, que só por meio della distinguimos uma segunda duma quarta-feira. Um só dia tem feição propria: o domingo. Assignala-ó a roupa limpa, a roupa nova, a roupa preta que toma sol pelas ruas no corpo de toda a gente. Redobram de movimento as praças. Caras novas de gente extra-muros dão os ares da sua graça. Ha mercado cedo, missas até ás II; depois continuam a assignalar o dia do Senhor, pelo resto da tarde, caboclos e negros encachaçados, agglomerados pelas vendas. Vendem os negocios mais pinga nesse dia do que đurante a semana inteira. Todos voltam para as casas mais ou menos bebedos. Os de cair dormem na cidade. Os de vinho exaltado, no xadrez. E assim transcorre o bello domingo sem necessidade de se ir á folhinha para saber que é domingo.

VIAGENS DE D'ANTES

O general Couto de Magalhães tem razão. Ha um abysmo entre as víagens de S. Paulo ao Rio de hoje e as d'antanho. Entre a viajada de quatorze dias a cavallo, com ar puro para os pulmões e bello panorama para os olhos, com pousadas nos ranchos, viola e cantigas de tropeiros, café coado na hora, á moda mineira, incidentes imprevistos, encontros de toda a especie, tudo rematado por um somno de pedra á noite — e as doze horas do trem de hoje, sem ar para respirar, sem paizagem para a vista (as janellinhas dos carros picam as grandes telas lateraes em quadradinhos sem encanto), cheiros desagradaveis para o nariz — das pontas de cigarros aos «micos destripados», o mulato de boné na orelha a berrar estações, recortando confettis nos bilhetes, um caldo negro nos réstaurantes, baptisado, ó irrisão! com o nome de café — vae um abysmo, o mesmo que separa o ovo fresco da pilula inventada pelo chimico, com força nutritiva egual á d'aquelle, muito boa, etc. e tal mas... pilula.

TOURADAS

Transformaram o antigo velodromo em circo de touros; metade das archibancadas virou Sombra, a mil réis, e a outra metade Sol, a quinhentos. Num camarote enfeitado de metim amarello e verde puzeram um «intelligente» pegado a laço e immensamente bronco. Ao seu lado um «clarim» tuberculoso. Cada vez que soprava na corneta faltava-lhe folego para um som completo, e o povo ria-se. Toureiro de verdade havia um, o Antonio Corajoso, empresário, bilheteiro e assessor do «intelligente». Mais dois açougueiros vestidos de toreros, com o competente rabicho, completavam a cuadrilha. A cada passinho Corajoso berrava para o «intelligente»: dê ordem de recolhida, faça isto, faça aquillo. E o pobre «intelligente» via-se tonto para conciliar uma burrice innata com os deveres do cargo. O povo vaiava ou applaudia, num tom amolecado que era toda a graça da festa. Réles, mas divertido. «Feche a boc-