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COISAS DO MEU DIARIO

ca, negro! Está com fome? (isto para um toureiro mulato), «Recolham esse canivete aleijado! (para um zebuzinho preto, muito magro). Hu! hu! Tira leite dessa vacca, ó canudo de pito!»

Uma farpa feriu um boi na veia e o sangue começou a escorrer. Enternecimento geral. Parou a tourada para se remendar o boi. Laçaram-no, coseram a ferida — operação demorada que consumiu vinte minutos. O povo, tomado de piedade, não consentiu que farpeassem os demais.

Havia palhaço, e este palhaço fazia jus ao cinturão de ouro do Desenxabimento e da Molleza. Tinha preguiça até de andar, preferindo apanhar marradas a apressar o passo.

Lá quando a banda de musica atacou a «Amoureuse», o ladrão atravessou a arena, dançando. Mas valsava com tamanha preguiça que o povo rompeu num berreiro encolerizado. «Lyncha o cynico!» «Mata!» E choveram-lhe em cima desaforos e cascas de pinhão.

Rematou a festa a «pantomina», como rezava o programma.

Appareceu o Pançudo, figura de um comico prodigioso.

Tinha tanto de largo como de alto. Perfeita esphera, encimada por uma cabeça e «embaixada» por dois pés. Era um homem acolchoado. Mal appareceu, em passinhos miudos e lentos, uma voz o denunciou: «E' o Zé de Mamã! Ahi, negro safado!». E toda a gente morreu de rir ao ver o pobre preto, muito sério, a suar em bicas dentro da couraça de colchões. O boi investiu, e remessou-o longe. Vieram erguel-o os toureiros. Nova investida. Novo rebolar. Nova erguida. E a bola approximava-se do touro, já desconfiado, em passinhos miudos de quem traz as pernas presas, offerecendo o trazeiro á marrada, um trazeiro onde havia um sol pintado de vermelhão. O povo torcia-se de goso. Por fim, todo esfuracado, com a palhaça espipada, recolheram-no a pulso, rolando-o pelo chão qual uma pipa...

O REI

Mette dó, nas touradas, o papel do boi, animal bronco — mas cheio da nobreza respeitavel de toda a bronquidão honrada e séria — posto a luctar com uns macacos enfeitados, que ora fogem para aqui, ora se escondem alli, ora se esgueiram aos bótes, bobeando o pobre animal com uma capa vermelha. Não ha lucta. O boi, tomado de colera, investe contra o inimigo para se bater á moda heroica de habito entre os seus. Mas só encontra vultos fugidios, miragens de homens que se somem ante suas marradas. Por fim o touro, comprehendendo o papel grotesco a que o obrigam, embezerra, baixa a cabeça com lagrimas de vergonha e dôr nos olhos bondosos, e não mais se presta ás sortes.

O papel do boi será idiota, mas o do toureiro é vil. No emtanto o homem é que é o rei dos animaes....

SALTO ALTO

A Maria Benedicta, cozinheira do João Saracura, passou annos de vida a sonhar com um par de sapatos de salto alto. Um dia encheu-se de coragem e applicou as economia num delles. Inaugurou-o numa tarde de procissão. Mas torceu o pé e está ha dois mezes no hospital. Moralidade: o melhor da festa ainda é esperar por ella.