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COISAS DO MEU DIARIO

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contava o caso ao irmão menor, na sua linguazinha pittoresca.

— E' cheia de ossinhos por dentro! Tal qual a gente...

O outro ouviu, dubitativo, e resolveu tirar a prova. Apanhou uma pulga do Joli, estalou-a entre as unhas e examinou-a minuciosamente. Depois concluiu:

— E mentira! Pulga não tem osso. O que tem dentro é um estalinho!...

BARQUINHA DE PAPEL

Quando chove, logo que passa a carga d'agua e o enxurro transforma a rua num systema potamographico de rios e riachos vermelhos, começam a derivar barquinhas de papel. A casa do Joaquim, o moleque chefe da rua, vira estaleiro. Saem de lá as grandes, com bandeirolas. A mocinha da esquina tambem deita a sua. E quem a seguir com os olhos verá o rapaz moreno que mora na outra esquina, e está á janella, correr á rua, apanhal-a, e ler, risonho, a mensagem a lapis da sua namorada...

O HEREJE

Os filhos do capitão Zarico brincam todos os dias debaixo da minha janella. E' a ciranda, é o pegador, é a senhora pastora. A preta Esmeria fica o tempo todo, com o caçula ao collo, vigiando-os. Hoje estava lá ella ás voltas com o pequerrucho:

— Quem tirou o toucinho d'aqui?

— Foi o gato.

— Que é do gato?

— O fogo queimou.

— Que é do fogo?

— O boi bebeu.

— Que é do boi?

— Está dizendo missa...

Resmunga a preta:

— Crédo! Tão pequenino e já hereje como o pae...

JUQUITA

O Juquita é o terror da bicharia miuda.

Cães e gatos conhecem-no de longe. Esta manhã estava a brincar com um sanhaço semi-morto que, de repente, não se sabe como, sumiu. O menino procurava-o quando passei.

— Não viu o meu sanhaço?

— O gato o pegou, de certo — suggeri.

— O gato? — e Juquita riu-se com um ar apiedado da minha asneira. O gato não tem coragem de chegar perto de mim!

A IDADE FELIZ

Sempre que me vê sentado, a escrever, trepa-me ao collo o Guilherme e fica muito attento a seguir os movimentos da penna sobre o papel.

— E' trem? pergunta.

— Não, filhinho, estou a escrever.

— E' carta?

— E'.

Satisfeita a curiosidade, fica a olhar, fungando.:. De repente acode-lhe uma idéasita e pede que «escreva um trem». Não ha remedio sinão interromper a carta e pintar um comprido trem de ferro, com innumeros vagões de muitas janellinhas.

Si esqueço a fumaça da locomotiva, reclama-a logo, como reclama rodas e janellas nalgum carro onde as haja de menos.

— Agora escreva um corvo sentado aqui — e o dedinho gordo aponta a chaminé.