Página:Cidades Mortas (contos e impressões) - 1921.pdf/26

Wikisource, a biblioteca livre
16
COISAS DO MEU DIARIO

— E um boi aqui. E um gatinho aqui. E um porco....

E o trem vae virando poleiro de bicharia. No melhor da festa, porém, o seu corpinho molleia, descaem-lhe os braços e todo elle se mergulha num somno de anjo...

CARNAVAL

Terça-feira de entrudo. Está cheio o cinema. Vaporiza-se o ar de ether perfumado. Vae lucta accesa pelos camarotes. Mocinhos sorridentes afrontam com esguichos de bisnaga as mocinhas empilhadas dentro, as quaes repellem o assalto, escondendo os olhos, retorcidas em momices e requebros. Sacodem os lança-perfumes á altura dos olhos dos assaltantes e põem-nos afinal em desbarato. Victoriosas e afogueadas, commentam a lucta, examinando as bisnagas num rapido balanço da munição consumida. Os paes, a um canto, aconselham economia — que um tubinho daquelles vale o preço duma arroba de café! Mas a peleja cresce de vulto, ganha o theatro inteiro. Onde está um magote de moças, está a escaramuça. Ha guerrilhas pelos corredores, pégas tremendos na platéa. Veem-se marmanjos abandonar de subito a refrega e fugir, de mãos nos olhos em braza, cuspilhando os confettis que lhes atafulharam na bocca.

Todo o mundo está pintalgado de rodelinhas polychromicas, que ás caras suadas se grudam como obreias.

Subito, a luz se extingue. Cessa a guerra, resfriada a meio pelo armisticio da treva. Vae começar o espectaculo. Abre-o uma sornice desenxabida de Pathé. Desdobram-se na tela umas scenas sempre as mesmas, demonstrativas da pieguice do francez que, decididamente, em materia de cinematographia é um Deus nos acuda de chateza. Não faltam os celebres beijos compridos — que já o povo chama beijo de cinema — beijos que arrancam suspiros ás meninas frangotas fazendo-os pousarem o pensamento nos Chiquinhos, Žézinhos, Lulús e Totós dos seus anhelos, áquell'hora perdidos no escuro da platéa. Já Escrich — unico romancista lido com prazer pelas nossas meninas — lhes havia ensinado o como, porque e quando de taes beijos de metro e meio. As fitas vieram completar o curso com a exemplificação visual. Haja occasião e os Chiquinhos e Zézinhos colherão os fructos do ensinamento precioso. Escandalizam-se os velhos com isso, mas é inveja pura, pois que taes beijos são a maior delicia da vida...

Após a «pathesada», entra a Cines a maçar o povo com um trabuco historico da época romana. Para o diabo os romanos!

Ao cabo, reaccende-se a luz — e referve de novo a batalha. Rebentam estouros de bisnagas vazias remessadas ao chão. O calor suffoca. Explodem gritinhos, risadas. O èxercicio carmina as faces das moças, pondo-lhes em alta a belleza. Ficam lindas as bonitas, apaga-se a feiura ás feias.

Carnaval! Carnaval! Tró-ló-ló!

Numa frisa de meninas vestidas de papel de seda, um pequerrucho de tres annos cabeceia de somno. Está empapelado de carmezim, com um grave nariz de homem a recobrir o narizito que Deus lhe deu. A cabecinha pende-lhe sobre o hombro. Dorme — dorme o somno dos anjos...