Página:Cidades Mortas (contos e impressões) - 1921.pdf/29

Wikisource, a biblioteca livre
CAVALLINHOS
19

— «Eu gostei mais do homem que se balança na rede e cae na peneira». A rede é o trapezio e a peneira é a rede de malhas...

Todos riram, a vóvó com delicias, Lauro complacente, e Juquinha, que estava á janella, cuspilhando nos transeuntes, recebeu olhares cheios de admiração amorosa. Elza parolou inda um bocado. Depois, voltando-se para o primo:

— Que horas são, Lauro?

— Sete e meia, expectorou o moço, com um pigarro que foi cuspir á rua.

— Quasi horas!... Começa ás oito. Não vae, mamãe? Vá, a senhora precisa de distracções. E' por causa desse aferrolhamento em casa que anda assim, magra e amarella. Saia, espaneje-se!

Nisto espoucaram foguetes. Elza contou-os, de dedo para o ar.

— Tres! E' o signal. E você, Lauro, vae ou?...

— Pode ser que sim, pode ser que não, gemeu o philosopho.

— Diabo de rapaz este! «Pode ser»!... O' velho de cem annos! O' caramujo! Desate isso, vá!

— Fazer? Ver trapézios? Meninos desossados? Palhaços?... Iria, si não houvesse lá nenhuma dessas cousas, nem a moça que corre no cavallo, nem o homem do arame, nem...

— Mas que é então que havia de haver?

— Nada. Gente nas prateleiras, cochilando, e na arena um gato morto, a cheirar...

— Só? Ai que já é mania d'originalidade! Pois vou eu. Não tanto pelos trabalhos como pela troça, o farrancho. Bole-se com um, atira-se uma casca de pinhão noutro, e assim corre a noite alegremente. E quem não fizer isto, neste cynismo de terra, morre encarangado, cria orelha de páo!

Ageitou sobre o penteado o fichú de seainha vermelha, deu uns retoques á cara deante do espelho e, com um «até logo, corujas!», sahiu com o Juquinha pela mão.

D. Didi recolheu. Lauro ficou outra vez só na saleta, uma perna sobre o braço da cadeira, fumando pensativamente. Zoava-lhe ainda no ouvido a parolice viva da prima. Consultou o relogio: quasi oito! Ergueu-se, tomou do chapéo e saiu.

Noite clara. No alto a lua cheia apascentava um rabanho de nuvenzinhas acarneiradas.
Lauro deambulou a esmo, de mãos cruzadas ás costas, batendo o calcanhar com a ponta da bengala.

Familias deslizavam pelas ruas com rumo ao circo; deslizavam como sombras, á luz baça do kerozene. Magotes de pretas passavam, taralhando, num rufo de saias engommadas. Iam com pressa, numa açodada ancia pelas molecagens do palhaço.

E Lauro rememorou os tempos em que tambem elle se tomava d'aquella sofreguidão, nos dias magnificos em que o pae annunciava ao jantar: «Apromptem-se, que hoje vamos aos cavalinhos.» Com longa antecedencia já elle e os irmãozinhos estavam vestidos com a roupa nova, gorro de marinheiro, bengalinha de junco, sentados á porta da rua esperando o anoitecer. No bolsinho tiniam tostões para as empadas. Lauro reviu nitidamente o Laurinho de outrora, trotando para o circo á frente do farrancho, e, depois, sentado na terceira fila das archibancadas, com olhadelas gulosas para a ultima, rente ao panno, onde se repimpavam os moleques. Lá é que era a pandega!

Soava a sineta. O povo pedia o