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NOITE DE S. JOÃO
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No meio da desorganização geral só não largou o posto o Quim, sempre deitado na sanfona, alheio ao mundo, absorto nas sonoridades fanhosas que su'alma de artista tosco ia arrancando ao instrumento querido.

Cessado o panico com o estouro final do busca-pé, surgiu o tio Pedro de porretinho em punho para « ensinar» o malvado. Quem foi? Quem não foi? Não fora ninguem, ninguem vira. Fervia ainda o commentario e a indignação quando entram para o terreiro duas criadas carregando bandejas com chicaras e bules.

— A gengibrada! «Evem» a gengibrada!

Foi agua na fervura. Todos se lembraram da garganta e esqueceram o busca-pé.

Era a vez de concertar os gorgomillos e matar no ovo a possivel constipação. Por minutos um soprar de chicaras e um chuchurrear estalado de lingua dominaram todos os barulhos.

— Está supimpa!

— Isto regenera o fígado.

— Corrobora, pois não.

— Mais uma chicara, D. Lulú?

— Está ardidinha, está, mas boa que dóe!

— Para mim nada como uma gengibrada com garapa! Me péllo!

— Está d'appetite, como diz o Eça.

Este commentario saiu do literatelho da roda, Julio da Silva de nome, e Julius d'Alcatrava no pseudonymo com que desovava sonetos semanaes nas folhas da terra. A Candoquinha, de ha muito pelo beiço, achou-lhe uma graça immensa.

— E' da pelle, este seu Julio!

Bem gengibrados, dispersaram-se de novo.

O Quim annunciou quadrilha. Organizaram-na, num ápice.

Quem marcava era o Julio. Ahl O Julio tinha graça para marcar... Era da pelle!

— «En avant tour»!

— «Grande chaine»! — «Tour, à pas de «porca»!

Gargalhadas, quiá, quiá, quiá; a Candoca fundia-se de gosto.

— Este seu Julio tem cada uma!...

Uma ex-musa do poeta não se conteve:

– Crédo, Candoca! você está escandalosa.

— Deixe. Isto é para quem pode..

— «Joujou d'enfant»! — «Grande confusion! Tour»!

— Seu Julio, outra vez «joujou d'enfant»!

— Arre, Candoca!

Para lá da fogueira enchia-se um grande balão. A criançada rodeava-o, acotovelando-se, na ancia de ver melhor. O Zéquinha era quem accendia a mécha e distribuia tabefes aos atrapalhadores. Um fumo sujo enchia o bojo multicor.

— Está prompto, pode largar!

— Ainda não, bobo! Falta gaz...

— Agora!

O «segurador», sentindo-o com força, largou-o e o balão, vacillante, subiu a prumo.

Foi um berreiro.

— Viva o balão! Viva o Santos Dumont!

O Julio, que nesse momento estylizava um «tour» com a sua «vis-a-vis», a Candoca, aproveitou a ensancha para um dito.

— O amor, D. Candoca, é como o balão: quanto mais rapido sobe, mais rapido deşapparece.

— Bom pensamento para um cartão postal! suspirou ingenuamente a menina, envolvendo o seu poeta num olhar de mel.