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CABELLOS COMPRIDOS
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Uma vez foi ouvir a prédica de um padre em missão pela zona, orador famoso pelas muitas almas que desatolára do chafurdeiro da perdição. Ouviu-lhe muita coisa que não entendeu, mas entendeu um pedacinho que terminava assim: «Meditae, meus irmãos, reflecti em cada uma das palavras das vossas orações quotidianas, pois do contrario não terão valor as vossas orações».

Das Dores sahiu da egreja impressionada com o extranho conselho e se foi em consulta á tia Vicencia, velha sabidissima em mezinhas e theologias.

— Tia Vicencia «viu» o que o seu conego disse? Para pensar em cada palavra, sinão a reza não vale...

A tia mastigou um «pois é» que dava toda a razão ao padre.

— Que coisa, não? foi o commentario final de Das Dores, que não deixava de achar exquisitissima aquella idéa.

A' noite era costume seu rezar uma tantas orações preventivas dos mil males possiveis do dia seguinte.

Mas até alli rezára-as como um phonographo, psi, psi, psi, amen. Tinha que pensar nas palavras, agora... Diabol Havia de ficar engraçada a reza...

Caiu a noite. Das Dores metteu-se na cama, cobriu a cabeça com o lençol e deu inicio á novidade. Abriu com o Padre Nosso.

— «Padre nosso que estaes no céo»; padre; padre; os padres; padre Pereira; padre vigario... Padre Luiz... Coitado, já morreu, e que morte feia — estuporado !... Padre... Que idéa do seu conego mandar a gente pensar nas palavras! Nem se póde rezar direito...

— «... nosso»; nosso é o que é da gente; nossa casa; nossa vida; nosso pae... P'ra quem seria que foi o Nosso Pae hontem? Para a nhá véva não é, que ella já melhorou. Seria para o major Lesbão? Coitado! Quem sabe se a estas horas já não está no outro mundo? Bom homem, aquelle... Tão caridoso... O' diabo! Não é que me ia distrahindo? «Nosso»; «nosso»... Em certas palavras não se tem geito de pensar....

— ...« que estaes no céo»; estar no céo, que lindeza não será! Os anjos voando, as estrellinhas, Nossa Senhora tão bonita, com o Menino no braço, os santos passeando de lá para cá.. O céo; céo; céo da bocca; céo azul. Porque será que se diz céo da bocca?

— «... santificado; san-ti-fi-ca-do; que é santo; dia santificado; dia santo...

— « ... seja vosso nome»; nome, nome bonito... Nome feio... Quantos tapas levei na bocca por dizer nomes feios! Quem me ensinava era aquella bruxa da Cesaria. Peste de negrinha! Onde andará ella? «Nome»; «Nome de gente»; «nome de cachorro». Gustavo, bonito nome. Está alli um que si quizesse... Mas nem me enxerga, o máozinho; é só a Loló p'r'aqui, a Loló p'ralli, aquella caraça de brôa... Gustavo é o nome de homem mais bonito para mim. De mulher é... Rozinha? Não. Merencia? Não... Home' a falar verdade, nenhum. Gustavo, Gustavinho... Ahn! que somno!

— «O pão nosso»; pão; pão; pão... Porque será que quando a gente repete muitas vezes uma palavra ella perde o geito e fica assim exquisita? Pão; pão; pã-o... Por fa- lar em pão, como anda minguado o pão do Zéca Padeiro! E que pão ruim! Azedo... Pão sovado; pão de cará; pão de Petropolis...