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CABELLOS COMPRIDOS

— «... de cada dia»; dia; dia; marido da noite; dia de sol; dia de chuva; dia das almas; dia de annos; dia bonito... E que dia bonito fez hontem! Vae ver que domingo chove. E' sempre assim. Havendo uma festinha chove mesmo. Amanhã si fizer bom dia vou á casa da Ignez. Coitada da Ignez! Acontece cada coisa nesta vida...

— «... dae-nos hoje»; hoje; hoje... Que é que eu fiz hoje? Ahn! Que somneira!

— «...e livre-nos, Senhor»; senhor; illustrissimo senhor Gustavo da Silva. Bonito nome! Senhor amado; Senhor morto; senhor, se-nhor, nhor-se, nhor-sim....

— ... de todo o mal»; mal; mal... mal... al...

Os olhos de Das Dores fecharam-se, o corpo molleou e o seu somno foi um só até ao romper do dia. Acordando, lembrou-se logo do caso da vespera. Sorriu. Achou que a idéa do conego — um padre de tanta fama! — não passava de uma grossa asneira. E pela primeira vez na vida, duvidou.

— Ora, titia — foi dizer á tia Vicencia, — aquillo é asneira. Si a gente fôr pensar em cada palavra, não póde rezar direito. O sêo conego que me perdôe, mas elle disse uma grande bobagem...

Não se sabe si a tia lhe deu razão ou não; mas o facto é que Das Dores continuou a rezar pelo systema antigo, mais rapido, mais correntio, e com certeza mais agradavel a Deus. Quem se sahiu mal do incidente foi o pobre do missionario. Cada vez que se referiam a elle perto de Das Dores ella floria a cara de uma risadinha ironica.

— Está ahi um que póde estar dizendo as coisas, que eu...

E concluia a phrase com inexprimivel muxoxo de pouco caso.....