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UM AVÔ

to isto, ia o velho empilhando, risonhamente, sobre a mesa de cabiuna, tirados dum amplo gavetão, a preciosa centena de patacos que saiam a ganhar a vida.

Arrumadas as pilhas e assignado o papel, pediu ao amiguinho que as recontasse.

— Oh major!

— Não, senhor, negocio é negocio, conte-as.

O freguez, insistido, recontou-as, emquanto o velho, de oculos erguidos para a testa, examinava com cuidado os dizeres obrigacionaes.

— Está certo? Muito que bem. Agora peço ao amiguinho que diga: o major é um ladrão!

O méco abriu a bocca.

— Vamos, diga! insistiu o velho.

— Mas é um desproposito, major! Como posso eu...

— Diga, amiguinho, diga, si quer levar o dinheiro; é condição...

O outro não teve remedio sinão ceder, e, muito desconchavado:

— Já que o major exige — disse — vá lá: o major é um... um...

— Vamos!

... ladrão.

— Não serve assim, não serve n'esse tom. Diga com raiva, gritando, com gestos de colera: o major é um ladrããão!!

— Ora, major, que exquisitice a sua...

— Não diz? Então paciencia...

E armou gesto de reencafuar os patacos na gaveta.

Vexadissimo, o parceiro berrou afinal que o major era um ladrão.

— Perfeitamente bem, disse o velho esfregando as mãos, perfeitissimamente bem, eh! eh! Agora vae o amiguinho dizer: o major arranca a camisa do pobre! Vamos! vamos!

O postulante protestou, estorceu-se, que não, que isso era demais; forçado, porém, fingiu colera e lá espirrou um desenxabidissimo: o major tira a camisa do pobre!

O avô applaudiu de novo, que muito bem, que perfeitamente, e continuou no jogo, num crescendo, té o derradeiro insulto, grave sobre todos: o major é um mação, é um hereje! As mãos do velhote esfregavam-se uma na outra, revelando a alegria intima do malvado, e sua bocca era um borbotar incessante de «muito-bens».

Nesse ponto fez uma pausa, severizou o semblante e, gravemente, disse:

— Si eu der emprestado o meu dinheiro ao amiguinho, o amiguinho, por occasião do vencimento, quando eu mandar cobral-o, irá dizer tudo isto ahi pelas esquinas, ou na botica, de modo que todo o mundo o ouça. Consequencia: eu fico sem o meu lindo cobre e o amiguinho transforma-se no meu maior inimigo. Pois si será assim, remediemos coisa tão feia: o amiguinho fica-se com a sua obrigação e eu com as minhas patacas.

E, dizendo-o, arrazou gostosamente para o gavetão entreaberto as pilhas sonantes da preciosa moeda.

— Desta fórma continuaremos amigos como sempre e tudo será um mar de rosas, não acha? Ora muito bem! Mudando de assumpto... o amiguinho acha que o capitão-mór colhe este anno as seis mil arrobas?