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O «RESTO DE ONÇA»

ta fez; e assim, fugindo, ia arrazando os onceiros.

Eu corria na frente, secco por ganhar a gloria da caçada, e por via disso me distanciei dos companheiros. De repente, sem ver nada, paf! um manotaço de unha na cara me pinchou de costas no chão, e senti um corpo cahir sentado em cima de mim. Ah, mundo! Que luta aquella! Eu c'os braços só defendia a cara, que se a onça me abocca, era o fim, e como a espingarda me ficasse debaixo do corpo, minha porfia era passar a unha n'ella.

O que me salvou foi a coragem do Brinquinho. Como os caçadores e os outros cães ainda não tivessem chegado, só elle me ajudava, latindo com desespero e ferrando o dente nos trazeiros da fera. Esta, a cada dentada, voltava-se para estapear o cachorro, que fugia — que fugia para atacar de novo logo que a onça virava a cara para mim.

Tudo isto que eu levo agora um tempão contando se passou num corisco de minuto. Lá em certo momento pude alcançar a faca — faquinha atôa de matar porco. Saquei a faca e casquei no pescoço da bicha. Quem disse enterrar? Vergou, a porquêra, como se fosse de lata, sem calar nem a pontinha! Vi-me perdido. «Férra, Brinquinho!» Aquella pessoa de quatro pés, com uma coragem louca, zás, outra dentada. A onça me folgou, e eu vi romper do mato o primeiro caçador. Era justamente o meu sogro.

— «Atira, nho Vadô!

Que atirar nada! O raio do maleiteiro ficou tão estuporado de me vêr na goela da onça, que estarreceu no logar.

— «Atira, nho Vadô!

Que, nada!...

Nisto houve geito de eu desentalar a espingarda e entrouxar o cano na goela do tigre. Estrondei o tiro e o bicho molleou de banda!...

Eu estava em pedaços, mas não sentia dôr nenhuma.

Só me lembro que, ainda no chão, puxei a espingarda de dentro da bocca da onça, virei o cano para o lado do meu sogro e sapequei nelle o segundo tiro, junto com um nome offensivo á defunta avó da minha mulher, Deus que me perdôe! De «reiva»... Depois veiu a dôr, e perdi os sentidos.

«O Resto de Onça» tomou folego.

— «E fiquei assim. O braço direito, sem carne, sem osso inteiro, foi preciso o medico cortar co'a serra; a cara e o peito foram sarando e fiquei assim, resto de onça, caco de gente, mas homem ainda para escorar o diabo!

***

— Então, que vos dizia eu? commentou, voltando-se para os companheiros, o que promettera extrahir um conto do primeiro conhecido á mão.

— Sim — retrucou um delles, ranzinza — mas não é bem um conto isso, é um caso, uma anecdota venatoria.

— Estás enganado, tem todas as qualidades de um conto e tem a principal: poder ser contado adeante de modo a interessar por um momento o auditorio.

Dê ao facto forma literaria, umas pitadas de descriptivo, pronomes p'r'alli, uns enfeites pimpões e prompto, vira conto dos authenticos, dos que não séccam a paciencia da humanidade com a archimaçadora psychologia do sr. Arthur Pecegueiro.