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O «RESTO DE ONÇA»
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parte e que continúa a viver com o resto do corpo. Pois assim mesmo ainda é um cuéra que eu não troco por tres sujeitos inteiros da cidade. Mecê vae ver.

De facto, vi. Organizado tudo, na vespera da caçada á tarde o primeiro a apresentar-se-me foi o «Resto de Onça».

— «Stardes».

Era um caboclo chupado, sem o braço direito, sem um olho, sem um pedaço de cara. Horrivel! Uma bochecha fôra lanhada e despegára com parte dos labios e o olho, de modo que aquillo por alli era uma só e pavorosa cicatriz repuxada em varias direcções. Entreabriu a camisa: no peito, a mamma esquerda arrancada a unhaços era outra horrivel cicatriz de arrepiar.

Pedi-lhe que me contasse a sua historia, e elle: «— Não vê que — foi dizendo — lá na fazenda do coronel Eusebio, na beira do sertão, havia onça que era um castigo. Foi preciso bater nellas de cachorrada e chumbo um anno inteiro para livrar o gado. O coronel, tanto lidou que venceu. As malhadas não mortas á bala afundaram para longe. Mas ficou uma. Era uma bella onça pintada, matreira como cachorro do mato. Tinha manhas de negro fujão. Nem mundéo, nem cachorro mestre, nem o Leopoldino Onceiro, que é um cabra macho para desilfudir uma bicha mesquinha, nunca puderam atinar com ella de geito a barrear a volta do apá com um lote de paula souza. Escapava sempre e de birra vinha pegar os porcos no chiqueiro.

Um dia — o coronel estava na mesa almoçando — rebentou um tumulto no chiqueirão de trás da casa. Corremos todos: estava a onça ferrada na mais bonita porca da fazenda, esbodegada com um munhecaço. Corre que corre, grita, atira: — ella escapuliu. O coronel virou bicho e jurou que era a ultima vez.

— «Ella volta, disse eu, ella não «deseste» da porca. O melhor é ficar um bom atirador de plantão, dia e noite.

— «Pois fica você.

Fiquei na tocaia, escondido de geito que a onça não pudesse desconfiar.

Varei a noite de olho acceso: nada.

Rompeu a manhã: nada.

Eu disse commigo:

— «Agora dou um pulo lá dentro, bebo o café e volto.

Fúi, enguli um cafézinho com mistura, depressa, depressa, mas quando voltei... «quedelle» a porca? A onça tinha-me logrado!...

O coronel quando soube bufou como queixada no mundéo.

— «Quim, disse elle, vá juntar gente e cachorrada. Bote um exercito aqui p'ra domingo e vamos picar de bala esta malvada. Quero ver o couro della aqui no chão, com seiscentos bilhões de diabos!

Eu sahi, corri a vizinhança e apalavrei para domingo tudo quanto era espingarda, foice e cachorro de cinco leguas de roda.

Chegado o dia, começou uma batida na ordem.

Tudo corria bem quando, de repente, du! áu! o meu Brinquinho — Conheci a voz — acuou primeiro de todos. E logo a cachorrada inteira, uns cincoenta — áu! áu! áu! — musica de arrepiar a gente. Ah, moço, que festa foi esse dia! A bicha de cada tapa moia um cão...

Ia parando na carreira, de tocaia atrás dos troncos e, mal o cachorro da frente a fronteava, baf! tripas de fóra! Um castigo!

Já levára um tiro, mas nem con-