Página:Cidades Mortas (contos e impressões) - 1921.pdf/59

Wikisource, a biblioteca livre
O CASO DO TOMBO
49

Nessa lagoa urbana rebentou um dia, com estardalhaço, a noticia d'uma sessão do jury. O povo rejubilou. Vinte annos havia que o realejo da justiça popular empoava num desvão do Forum, mudo á falta d'um capadocio que lhe mettesse no bojo o nickel de modesto ferimento leve. Fizera-o agora o Chico Bahiano, ave d'arribação despejada alli por um navio da Costeira. Que regalo! Ia o promotor cantar a aria tremenda da Accusação; o Zézéca Esteves, solicitador, recitaria a Douda de Albano disfarçada em Defeza. Sua Excellencia, o Meritissimo, faria de ponto e contra-regra. Delicias da vida!

Ao pé do fogo, em casebre humilde, o pae explicava ao filho:

— Aquillo é que é, Manequinho! Você vae ver uma estrumela de gosto, que até parece missa cantada de Taubaté. O juiz, feito um gavião pato, senta no meio da mesa num estrado deste porte; á mão direita fica o doutor promotor com uma maçaroca de papeis na frente. Em baixo, na sala, uma mesa comprida com os jurados em roda E a coisa 'garra num falatorio té noite alta: o Chico lê que lê; o promotor fala e refala; o Zézéca rebate, e tal e tal. Uma lindeza!

No José Inchado:

— Lembra-se, compadre, daquelle jury, deve fazer vinte annos, que «absorveu» o Pedro Intanha? Eh, jury macota! O dr. Gusmão veiu de Pinda especialmente, e falou que nem um vigario. Era só: o nobre «orgo» do ministerio p'r'aqui, o«meritricio» doutor juiz p'r'alli. Sabia dizer as coisas, o ladrão! Tambem comeu milho grosso, p'ra mais de quinhentos bagos, dizem. Mas valia. Isso lá valia!

Na Botica do Cação de Ouro:

— Não, não, você está enganado, não foi desse geito, não! Ora, ora! Pois se eu até servi de testemunha!... Não teime, homem de Deos!... Sabe como foi? Eu lhe conto: o Pedro Intanha teve um bate-bocca com o major Vaz, perdeu a cabeça e lhe chamou «estupor», bem alli defronte da Nha Vica; e vae o major e diz: «estupor é a avó». Foi então o Pedro, e...

Só não gostou da noticia o meu tio juiz. Maçada. Incommodar-se por causa d'um crimezinho que não valia a pena....

E tinha razão. O delicto do mulato não valia uma casca d'ostra.

Chico Bahiano costumava, todas as noites, «soverter» um martelo da legitima no botequim do Bento Ventania. Ficava alegrete, chasqueador, mas não passava disso. Certa vez, porém, errou a dóse, e em vez do martelo costumeiro, chamou para o papo tres. O restilo era de primeira e lhe subiu logo á torre das idéas. A principio Bahiano destabocou. Deu grandes punhadas no balcão, berrou que o Sul era uma jossa, que o Norte é que é, que bahiano é alli no duro, que quem fosse homem que pulasse para fóra, etc., etc. O botequim estava deserto, não havia quem lhe apanhasse a luva a não ser o Ventania; mas este accendeu o cigarro, pachorrentamente, trancou as portas na cara do bebedo e foi dormir.

Chico Bahiano, na rua, continuou a desafiar o mundo — que rachava, partia caras, arrancava figados.

Infelizmente, tambem a rua estava deserta, e nem siquer a lua, a pino, lhe dava sombras com que esgrimisse.

Foi quando saltou do corredor da casă dos Mouras o Joli, cachorrinho de estimação da Sinharinha Moura, bicho de collo, me-