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O CASO DO TOMBO

tade pellado, metade pelludo, e deu de ladrar feito um bobo em frente ao insolito perturbador do silencio.

O Bahiano sorriu-se. Tinha contendor, afinal.

— 'guenta lixo! — disse, e, cambeteando, descreveu umas letras de capoeiragem, cujo remate foi um valente ponta pé que projectou o tótó a cinco metros de distancia. Joli rompeu num ganir de cortar a alma, e o offensor, perdido o equilibrio, veiu de lombo ao chão.

A Mourisma despertou de sobresalto, surgindo logo á porta o rotundo Maneco Moura, intendente da Camara, de camisola, carapuça de dormir e uma vela na mão. Estrouvinhado, o homem não enxergava coisa nenhuma desta vida a não ser o clarão da luz.

— Que é lá isso ahi? berrou para a rua.

— E' pimenta malagueta! roncou o mulato já a prumo; e emquanto o Moura, esfregando os olhos, perguntava a si proprio si não era aquillo pesadelo, o facinora desenha no ar um rabo d'arraia, do qual resulta desmoronar-se o vereador na calçada, fragorosamente, esborrachando o nariz.

Era esse o facto sobre cuja talagarça ia a Justiça bordar as scenas serio-comicas do intermezo inglez que traduzimos em calão.

Fale o tio: foi uma séca sem nome o tal jury. O promotor, sequioso por falar, com a eloquencia ingurgitada por vinte annos de chôco, atuchou no auditorio cinco horas massiças d'uma rhetorica do tempo do onça, que foram cinco horas de pigarros e caroços de encher balaios. Principiou historiando o direito criminal desde o Pithecanthropo Erecto, com estações em Lycurgo, Vêdas, Moysés e Zend-Avesta, Analysou todas as theorias philosophicas que vêm do Confucio a Farias Brito; anniquilou Lombroso e mais as «lerias» de Garófalo (que dizia Garofálo); provou que o livre arbitrio é a maior das verdades absolutas e os deterministas uns cavallos, inimigos da religião de nossos paes; arrazou Comte, Spencer e Haeckel, como os representantes do Anti-Christo na terra.

Contou depois a sua vida, a sua nobre ascendencia entroncada na alta prosapia d'uns Esteves do Rio Cávado, em Portugal; o heroismo de um tio morto na guerra do Paraguay e o não menos heroico ferimento de um primo, hoje escripturario do Ministerio da Guerra, que teve offendida por bayoneta em Cerro Corá a «face lateral do lóbo da orelha sinistra».

Provou, em seguida, a immaculabilidade da sua vida; releu o cabeçalho da accusação feita no julgamento-Intanha; citou periodos de Bossuet — a aguia de Meaux, de Ruy — a aguia de Haya, e de outras aves menores; leu paginas de Balmes e Donoso Cortez sobre a resignação christã; adduziu todos os argumentos do Doutor Subtil a respeito da Santissima Trindade; e concluíu, finalmente, pedindo a condemnação daquella fera humana que «cynica me olha como para um palacío» a galés perpetuas por 30 annos, mais a multa da lei.

Aqui o tio parou acabrunhado. Correu a mão livida pela testa suada. Negrejaram-se-lhe as olheiras. Depois, continuou:

— Sinto um cançaço d'alma ao recordar esse dia.... Como é fertil em recursos a imbecilidade humana!

Houve replica. Houve treplica. O Zézéca bateu o promotor em asnice.