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O FIGADO INDISCRETO
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«noivinha», tudo com meias palavras intencionaes, sublinhadas de piscadelas para a direita e para a esquerda.

Ignacio avermelhou, tartamudeando palavras desconchavadas, emquanto o diabrete da menina maliciosamente insistia:

— Quando os doces, sêo Ignacio?

Respostas mascadas, gaguejadas, ineptas, foram o que sahiu de dentro do moço, incapaz de réplicas geitosas sempre que ouvia risos femíninos em redor de si. Salvou-o, a ida para a mesa.

Lá, emquanto enguliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilibrio. O pobre rapaz por dá cá aquella palha mudava-se de si para fóra, soffrendo todos os horrores consequentes. A culpada aqui foi a dona da casa. Serviu-lhe d. Luiza um bife de figado, sem consulta prévia. Exquisitice dos Lemos: comiam-se figaddos naquella casa até nos dias mais solemnes. Exquisitice do Igacio: nascera com a estranha idiosyncrasia de não poder siquer ouvir falar em figado. Seu estomago, seu esophago e talvez seu proprio figado tinham pela viscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse Ignacio em contrarial-os: amotinavam-se, repellindo indecorosamente o pedaço ingerido.

Nesse dia, mal o serviu d. Luiza, Ignacio avermelhou de novo e novamente saíu fóra de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiavel solução. Sentiu lá dentro o motim das visceras e o estomago, encrespado de cólera, a exigir, com imperio, respeito ás suas antipathias. Parlamentou com o orgão digestivo, mostrou-lhe que máo momento era aquelle para uma guerra intestina. Tentou acalmal-o a góles de clarete, jurando eterna abstenção para o futuro. Pobre Ignacio! A porejar suor gelado na asa do nariz, chamou a postos o heroismo, evocou todos os martyrios soffridos pelos christãos na era romana e os padecidos na era christã pelos hereticos; contou um, dois, tres e glug! enguliù meio figado sem mastigar. Um góle precipitado de vinho rebateu o empache. E Ignacio, de olhos arregalados, immovel, esperou a revolução intestina.

Em redor, a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitar o supplicio daquelle martyr posto a tormentos de uma nova especie.

— «Você já reparou, Milóca, na «ganja» da Sinhárinha? disse uma sirigaita de «belleza» na testa. Está como quem viu o passarinho verde... E olhou de soslaio para Ignacio.

O colouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo ás vozes mundo, todo se concentrava na auscultação das vozes visceraes. Além disso, a tortura não estava concluida: tinha ainda deante de si a segunda parte do figado engulhento. Era mister atacal-o e concluir de vez a ingestão penosa. Ignacio engatilhou-se de novo e — um, dois, tres: glug! — lá rodou esophago abaixo o resto da miseravel glandula.

Maravilha! O estomago, por inexplicavel milagre de polidez, não reagiu. Estava salvo Ignacio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pallido, com o ar lorpa dos resuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de goso, como riria Hercules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo os rumores do