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O FIGADO INDISCRETO

mundo, seu cerebro entrava a funccionar normalmente e seus olhos volveram outra vez ás visões habituaes.

Estava nessa beatitude, quando:

— Não sabia que o senhor gostava tanto de figado, disse d. Luiza, vendo-lhe o prato vazio. Repita a dóse!

O instincto de conservação de Ignacio pulou em guarda. E, fóra de si outra vez, o pobre moço exclamou, tomado de panico:

— Não! Não! Muito obrigado!...

— Ora deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimonias casa de amigos? Coma, coma, que ão é vergonha gostar de figado. Ahi está o Lemos, que se péla por uma isca.

— Iscas são commigo, confirmou o velho. Lá isso não nego. Com ellas ou sem ellas, nunca as enjeitei. Tens bom gosto, rapaz! Serve-lhe, serve-lhe mais, Luiza.

É não houve salvação! Veiu para o prato de Ignacio um novo naco, e este formidavel, dóse dupla.

Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem Shakespeare, nem Mæterlinck — ninguem dirá nunca os lances tragicos da estomacal tragedia sem palavras. Nem eu, portanto. Direi sómente que á memoria de Ignacio acudiu o caso da Nora de Ibsen e elle aguardou disfarçadamente o milagre.

E o milagre veiu desta vez. Um criado estouvadão tropeçou no tapete soltando o perú no collo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Ignacio, num lampejo de genio agarra o figado e mette-o no bolso.

Salvo! Nem d. Luiza, nem os vizinhos perceberam o truque — e o jantar chegou á goiabada sem maior incidente.

Antes da dançata lembrou alguem recitativos e a espevitadíssima Milóca veiu ter com Ignacio.

— A festa é sua, dr. Ignacio. Nós queremos ouvil-o. Dizem que o dr. recita admiravelmente! Vamos, um sonetinho de Bilac. Não sabe? Olha o luxinho! Vamos, vamos! Repare quem está no piano: é ella quem o vae acompanhar... Nem assim? Máozinho! Quer decerto que a Sinhárinha inste?... Ora, até que emfim! A «Douda de Albano»? Conheço sim, é linda, embora um pouco fóra da moda. Toque a Dalila, Sinhárinha, bem piano, assim...

Ignacio, vexadissimo, vermelhissimo, já em suores, foi para pé do piano onde a futura consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a «Douda de Albano».

Pelo meio dessa hecatombe em verso, ahi pela quarta ou quinta desgraça, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando como importuna mosca. Ignacio lembra-se do lenço e sacca-o fóra. Mas com o lenço vem o figado, que faz plaff no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame viscera, manobras do instincto, salvam a situação.

Mas desde esse momento a sala começou a observar um extraordinario phenomeno. Ignacio, que tanto se fizera rogar, não queria agora deixar o piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguem lh'o pedisse. E' que o acorrentava áquella posto, novo Prometheu, o implacavel figado...

Ignacio recitava. Recitou o «Navio negreiro», «As duas ilhas», «Vozes da Africa», «O Tejo era sereno».

Sinhárinha, desconfiada, abandonou o piano. Ignacio, firme. Recitou o «Corvo» de Edgar Pöe, tra-