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O FIGADO INDISCRETO
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duzido pelo sr. João Kopke; recitou o «Quizera amar-te», o «Acorda donzella»: borbotou poemetos, modinhas e quadras.

Sinhárinha num canto da sala, estava chóra não chóra. Todos se entreolhavam aparvalhados: teria enlouquecido o moço?

Ignacio, firme. Completamente fóra de si (era a quarta vez que isso lhe acontecia naquella festa) e falto já de recitativos de salão, recorreu aos Luziadas. Declamou «As armas e os barões», «Estavas, linda Ignez», «Do reino a redea leve», o «Adamastor» — tudo!...

E, exgotado Camões, ia-lhe saindo um «ponto» de Philosophia do Direito — «A escola de Bentham» — a coisa ultima que lhe restava de cór na memoria, quando perdeu o equilibrio, escorregou e caiu, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamissima viscera de má morte...

O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor da Sinhárinha morreu nesse dia; que a conspiração matrimonial falhou, e que Ignacio mudou de terra. Mudou de terra porque o desalmado major Lemos deu de espalhar pela cidade inteira que Ignacio era, sem duvida, um bom rapaz, mas com um grave defeito: quando gostava de um prato, não se contentava de comer delle e repetir — ainda levava escondido no bolso o que podia...