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O PLAGIO
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sciencia de varios idiotismos, usando amiude o qu'est-ce que c'est que çá; sabia de cór a historia do Didon dit-on, além d'uma duzia de prosopopéas d'alto calibre, forrageadas nos «Miseraveis» — o que já é bagagem glossica de peso para um carrapato orçamentivoro com seis annos de sucção.

Taes conhecimentos, mensalmente postos em jogo, bastavam para espezinhar 'a paciencia do livreiro a quem Ernesto, em todo dois de cada mez, alugava um bacamarte de Escrich, matador das horas vazias da repartição.

Naquella tarde, porém, Ernesto não queria livros e sim um tecto, razão pela qual falhou o sempiterno encentamento de séca. (Esse ritual começava assim: Qu'est-ce que vous avez de nouveau, monsieur?).

Fóra, em regougos sibilantes o vento pulverizava a chuva.

Tinha de esperar.

Esperou. Esperou, remexendo estantes, folheando revistas, lendo a meia voz os titulos dourados. De longe em longe tomava um volume e perguntava ao francez acurvado na escripturação de um livro de capa preta:

Combien, monsieur?

E á resposta do homem repicava invariavelmente:

C'est trés salé, c'est très salé, c'est trés salé — estribilho trauteado em surdina até que novo livro lhe empolgasse a attenção.

Empolgou-lh'a logo depois uma brochura esborcinada: A Maravilha, de Ernesto Souza.

— Olé! Um xará! Combien, monsieur?

O livreiro, sem maior attenção, rosnou qualquer cousa emquanto Ernesto, absorto no manuseio do livro, ia murmurando machinalmente o trés salé.

Leu-lhe o periodo inicial e o final, vezo antigo adquirido no collegio, onde colleccionava num caderno a primeira e a ultima phrase de quanto livro lhe transitava pela carteira.

A Maravilha era um desses romances esquecidos que trazem nome do autor á frente d'uma comitiva de identificações á laia de passaportes á posteridade, muito em moda no tempo do onça:

Alfredo Maria Jacuacanga
(natural do Recife)
3.o annista da Escola de Medicina de Bahia
ou :
Doutor Cornello Rodrigues Fontoura
Ex-lente disto, ex-director dequillo, ex-membro do
Pedagogium, ex-deputado provincial, ex-caval-
leiro da Cruz Preta, etc., etc., etc.

Romances descabellados onde ha lagrimas como punhos, e punhaes vingativos, e virtudes premiadissimas de par com vicios archi-castigados pela intervenção final e apotheotica do Dedo de Deus — livros que a traça leu e rendilhou nos poucos exemplares escapos á funcção sobre todas bemdita de capear bombas de foguetes.

O periodo final rezava assim: «E um rubro fio de sangue correu do niveo seio da donzella apunhalada, como uma vibora de coral num marmore pagão.»

Ernesto, de Oliveira mas d'Olivaes por contingencias estheticas, enrubesceu de apollineo prazer. E assoou-se, modo muito seu de enthusiasmo chegado a ponto de arrepio.

— Sim, senhor! Estava alli uma phrase soberbal «Como vibora de coral...» Magnifico! E aquelle «marmore pagão?»