Página:Cidades Mortas (contos e impressões) - 1921.pdf/74

Wikisource, a biblioteca livre
64
O PLAGIO

Foi ter com o Monsieur e leu-lh'a «com alma»; mas o typo, absorvido numa addição, miou o oui, oui, sem erguer siquer a cabeça.

Ernesto não comprou o livro (não era dois do mez) mas escondeu-o num desvão para que ninguem lhe puzesse a vista em cima até ao dia acquisitivo.

Emquanto isso a chuva amainára.

Ernesto entreabriu a porta, espiou a rua murmurejante nas sargetas e resolveu abalar.

Monsieur, au revoir!

Oui, oui, miou pela ultima vez o bruto.

Na rua endireitou para casa, ruminando — que sim senhor, era ter fogo sagrado! Uma phrase daquellas fazia um nome; o xará tinha talento, e bem dizia Victor Hugo nos «Miseraveis» que o genio... é o genio!

E foi pelo caminho redizendo-a em mente, com cariciosa uncção, remirando-a por todos os lados, sob todas as luzes. Degustou-a como um sybarita: pelo som, repetindo-a em surdina innumeras vezes; pela fórma, revendo o geito com que a fixaram no papel as caracteres typographicos; pelas correlações associadas, evocando vagos hellenismos classicos que o padre mestre Jordão lhe embutira no cerebro a palmatoadas — Phrynéa, o cão de Alcebiades, as Thermopylas, o ancorote de Diogenes.

Por fim, á noite, já a celebre phrase se lhe encrustara nos miolos no logar onde costumam encruar as idéas fixas.

Chegou a repetil-a a d. Eucharis. Mas d. Eucharis, uma criatura sovada, toda virtudes conjugaes e preoccupações caseiras, interrompeu-o prosaicamente:

— E você trouxe, Nenesto, o pavio de lampião que te encommendei?

Ernesto d'Olivaes arrepanhou a cara num assomo de dó ante a chinfrinice mental da companheira. Dó, despeito e meia colera, cousa rara em sua alma de amanuense, gommosa e mansa.

— Que pavio? Que me importa o pavio? Quem fala aqui de pavio? Ora não me aborreça com historias de pavio!

E voltando-se para o canto (que a scena se passava na cama) enbezerrou.


O somno dessa noite não foi bom conselheiro, e Ernesto, no dia seguinte, andou pela repartição mais meditativo que de costume, com olhos parados — olhos de cabra morta que olham sem ver.

E' que uma idéa...

Não era bem uma idéa, mas cellulas vagas, destroços vogantes de idéas mortas, lampejos de idéas futuras, coisas tão affins que ao cabo de tres dias se fundiam numa idéa-mãe de imperiosa vitalidade.

— Escrever um conto, uma simples «variedade», em linguagem bem caprichada, com floreados bem bonitos, arabescos de estylo...

Duas ou tres personagens — não gostava de muita gente. Um conde, uma condessa pallida, a cidade de Tres Estrellinhas, o anno de 18... Como enredo, uma paixão violenta da condessa X. pelo pintor Gontran. Gostava muito deste nome. A scena, já se sabe, passava-se em França, que nunca achára geito em personagens nacionaes, vivendo em nosso meio, ao nosso lado. Perdiam o encanto. A narrativa vinha num crescendo até engastar-se naquelle final... Oh! sim!... naquelle final. porque, em summa, o conto viveria para justificar a exhibição daquella