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O PLAGIO
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joia de «cellineo lavor». E logo abaixo o seu nome por extenso: Ernesto da Cunha Olivaes.

Esse remate furtado ao xará d´A Maravilha insinuou-se aos poucos na consciencia de Ernesto como coisa muito sua, propriedade artistica indiscutivel.

A Maravilha, ora! Um miseravel caco de livro cuja existencia ninguem conhecia...

Plagio? Como plagio? Porque plagio?! E' tão commum duas criaturas terem a mesma idéa... Coincidencia, simplesmente. E além disso, quem daria pela coisa?

Ernesto era literato.

«Fazer literatura» é a fórma natural da calaçaria indigena. Em outros paizes o desoccupado ou pesca, où caça, ou joga o murro. Aqui belletrea. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuaes da literatura onde se adjectiva soramente uma idéazita de meia tigela, sempre feminina, sem pé e raramente com cabeça, que gosa a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. A grammatica soffre umas poucas marradas, os typographos lá ganham sua vida, as beldades se saboream na adjectivança mellosa e o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de dinheiro é uma simples maçada, e faz jús a qualquer academia de letras, existente ou por existir, de Sapopemba a Icó.

Ernesto não fugira á regra. Em moço, emquanto vivia ás sopas do pae, á espera de que lhe cahisse do céo um amanuensado, fundára a «Violeta», orgam literario e recreativo, com charadas, sonetos, variedades e mais mimos de Apollo e Minerva. Redigiu depois uma folha «critica, scientifica e litteraria» com dois tt, «O Combate», que morreu aos 7 mezes combatendo a syntaxe até ao derradeiro transe. Compoz nesse intervallo, e publicou, um livro de sonetos cuja impressão deu com o pae na miseria.

Incomprehendido pelo publico, que não percebia o advento de um novo genio, Ernesto amargou como peroba miuda, deixou crescer grenha e barba, esgroviou-se e disse cobras cascaveis do paiz, do publico, da critica, do José Verissimo e da cambada da Academia de Letras. Citava amiude Schopenhauer e Hartmann, mostrando tendencias para saltar dum pessimismo inoffensivo ao perigoso nihilismo russo. Foi quando o pae, farto das attitudes theatraes do filho, o metteu numa roda de guatambú pondo-o. fóra de casa com valente ponta-pé: — «Vá ganhar a vida, seu anarchista de borra!»

Ernesto, jurúrú, achegou-se a um tio, influente na politica, e cavou afinal o empreguinho.

No empreguinho amou, casou e tomou a seu cargo a secção «Conselhos Uteis» do «Batalhador». Estava nisso quando ventou, choveu, entrou no sebo, pilhou A Maravilha e patinhou como Hamleto num pégo de indecisões, até que....

Ernesto, em tiras de papel do governo, lançou em bello cursivo um começo bem arredondado:

«Era por uma dessas noites de abril, em que o céo recamado de estrellas lembra um manto negro com mil buraquinhos...»


Na rodinha de orçamentivoros que domingueiramente beberricavam o chá com torradas de d. Eucharis, todos afinados pela cravelha de Ernesto — victimas imbelles da incomprehensão — o conto estampado no «Lyrio» causou agrada-