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O LUZEIRO AGRICOLA
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ma este verme orgulhoso e mesquinho! Baudelaire, dae-me os teus venenos!...

— Rapazes, berrava o livreiro á caixeirada, ponham-me este vate no olho da rua!

O poeta, ante o manu-militari irretorquivel, tomando a papelada lyrica, muscava-se para a zona neutra da calçada onde, readquirida a altivez ossianica, objurgava para dentro da loja hostil:

— A Posteridade me vingará, javardos!

E sacudia á porta o pó das sandalias, que, no caso, eram surradas e já risonhas botinas de bezerro.

Em seguida, remessando para trás a cabelleira, num repellão, ia fincar-se sinistramente á esquina proxima, em torva attitude, á espera d'um conhecido esfaqueavel a quem extorquisse um nickel com gestos soberbos á Cyrano de Bergerac.

Cançado, porém, de ouvir estrellas em jejum, de amar a lua no céo sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estomago e quebrou a lyra — para viver.

Metteu a tesoura nas melenas, deu tal ou qual brilho aos sapatos com esfregações de cascas de banana, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto e vago do aédo pelo ar avaccalhado do pretendente e, á força de cartas commendaticias, guindou-se ás cumeadas do Morro da Graça. Todo o mundo o recommendou ao Gaúcho Omnipotente, porque todos andavam fartos daquella permanente fome lyrica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros. Que fosse acarrapatar-se ao Estado. O Estado é um boi gordo, semelhante áquella estatua equestre de Hindenburgo, feita de madeira, em que os allemães pregavam pregos de ouro. A differença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro, se pregam Capistranos vivos.

Foi apresentado ao Pinheirão.

— Então, menino, que quer?

— Um empreguinho qualquer que Vossa Omnipotencia haja por bem conceder-me.

— E para que presta você, menino?

— Eu? Eu... fui poeta. Cantei o Amor, a Mulher, a Belleza, as manhãs côr de rosa, as auroras boreaes, a natureza emfim. Romantico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Classico, bebi mel do Hymeto pela taça de Anacreonte. Evoluindo para o parnasianismo, burilei marmores de Paros com os cinzeis de Heredia. Quando quebrei a lyra, ascendia ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um genio incomprehendido, novo Ahasverus a percorrer todas as regiões do Ideal em busca da Fórma Perfeita. Qual Prometheu, vivi atado ao potro da Inania Verba, onde me roeu o Abutre da Perfeição Suprema. Foi um Torturado da Fórma....

O general, que era amigo das bellas imagens, illuminou o rosto de um sorriso promissor.

— Poeta, disse, eu tambem sou poeta. Rimo homens. Componho poemas heróe-comicos. Conheces a Hérmeida? E' obra minha. Amo as bellas imagens. Tenho lançado algumas immortaes. A mulher de Cesar! Os levitas do Alcorão! Hein? Tu me caiste em graça. Acolho-te sob o meu pallio. Que queres ser?

— Inspector.

— ...de quarteirão?

— Isso não.

— Agricola?

— Ou avicola...