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A «CRUZ DE OURO»

e varias curiosidades naturaes — caramujos, conchas, um ninho de João-de-barro, um mico sêcco e uma familia de içás vestidos. Nas paredes um espelho oval, dois retratos grandes a carvão, e photographias em porta-cartões de talagarça, bordados pelas meninas. Pendurado do gaz, um grande abacaxi de papel de seda. Piano de armario. Tapete com uma grande onça. Que mais? Iam-me esquecendo as duas escarradeiras com caraças de leões... Viva o naturalismo!

Entrados que foram os coroneis, refestelaram-se nas cadeiras de balanço, o do «ui!» com cautelas, gemidos e caretas ao dobrar as juntas. Liberato puxou o cigarro de palha e, emquanto afrouxava o fumo na palma, reatou a conversa.

— Ahn! com que então a d. Chiquinha....

— Compadre, entre nós não ha segredos; a doença della são amores. Quer casar, ora ahi tem!

— Não vejo mal nisso. Está na edade. Só si....

— Mas adivinhe lá com quem a tolinha embirrinchou de casar?

— Com o José de Paula!

— O filho da Nha Vé?

— Esse mesmo. Um tranca, sem vintem de seu, gente do Chicão de Paula... Que cabeça! Sahir do nicho de filha unica, onde vive como uma Nossa Senhorinha, para ligar-se a um lorpa de marido, ser criada, escrava delle! Si pudessemos, nós que temos experiencia da vida, abrir os olhos a essas maripozinhas tontas... Mas é inutil. Encasquéta-se-lhes na cabeça que o amor, o amôôr!, o amôôôr!! é tudo na vida, e adeus. O que nos vale é que o rapaz é pobre mas direitinho, quanto ao moral.

Liberato interveiu com cara purgativa.

— Homem, não sei. Não é por falar, mas não me cheira bem aquelle sujeitinho. Você o acha moralizado. Será. Mas a familia delle é dróga e a prudencia manda attender não só ás qualidades do galho como tambem ás da arvore. Olhe o que succedeu outro dia com o primo delle, o Chiquinho...

— Não soube de nada, compadre, que foi?

— Você anda no mundo da lua, homem! Refiro-me ao escandalo da Recreativa.

A palavra escandalo Nho Gué esqueceu o rheumatismo e arrastou a cadeira para mais perto.

— Escandalo? Esmiuce-me lá isso, compadre.

O coronel Liberato, gososo por contar uma novidade não sabida, limpou o pigarro da garganta e disse:

— Foi no ultimo domingo, na festa annual da Recreativa. Discursos recitativos, e uma peça, aquella indromina sempre. A sociedade mandou convite para toda a gente, os jornaes, os gremios e d'entre estes para a «Camelia Branca» da qual é secretario o Chiquinho de Paula. primo lá do teu. Por signal que para a «Camelia» foi um camarote, o sete, justamente aquelle donde assistimos ao «Poder do Ouro», lembra-se você?

— Si me lembro! Pois uma representação d'aquella é de esquecer? Montepin! e inda mais pelo Furtado! Noitão! Hoje é que não ha mais disso. São umas comediazinhas indecentes, e cinemas, e drogas.

— A Lucinda, hein? mulherão!

Este «mulherão» foi dito com um arregalar d'olho onde toda a con-