Página:Collecção de autores portuguezes (Tomos I-IV).djvu/513

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quão negra era a predestinação do poeta, porventura que essa espécie de culto de que o cercavam se converteria em compaixão ou antes em terror. Os hinos tão suaves, tão cheios de unção, tão íntimos, que os salmistas das catedrais de Espanha repetiam com entusiasmo eram como o respirar tranqüilo do sono da madrugada que vem depois de arquejar e gemer de pesadelo noturno. Rápido e raro passava o sorrir nas faces de Eurico; profundas e indeléveis eram as rugas da sua fronte. No sorriso reverberava o hino pio, harmo­nioso, santo dessa alma, quando, alevantando‑se da terra, se entra­nhava nos sonhos de um mundo melhor. As rugas, porém, da fronte do presbítero, semelhante às vagas varridas pelo noroeste, respondia um canto lúgubre de cólera ou desalento, que rebramia lá dentro, quando a sua imaginação, caindo, como a águia ferida, das alturas do espaço, se rojava pela morada dos homens. Era este canto dolo­roso e tétrico, o qual lhe transudava do coração em noites não dormidas, na montanha ou na selva, na campina ou no estreito aposento, que ele derramava em torrentes de amargura ou de fel sobre pergaminhos que nem o ostiário nem ninguém tinha visto. Estes poemas, em que palpitava a indignação e a dor de um ânimo generoso, eram o Gethsemani do poeta. Todavia, os virtuosos nem sequer o imaginavam, porque não perceberiam como, tranqüila a consciência e repousada a vida, um coração pode devorar‑se a si próprio, e os maus não criam que o sacerdote, embebido unicamente em suas esperanças crédulas, em suas cogitações de além do túmulo, curasse dos males e crimes que roíam o império moribundo dos visigodos; não criam que tivesse um verbo de cólera para amaldiçoar os homens aquele que ensinava o perdão e o amor. Era por isso que o poeta escondia as suas terríveis inspirações. Monstruosas para uns, objeto de ludíbrio para outros, numa sociedade corrupta, em que a virtude era egoísta e o vício incrédulo, ninguém o escutara, ou, antes, ninguém o entenderia.

Levado à existência tranqüila do sacerdócio pela desesperança, Eurico sentira a princípio uma suave melancolia refrigerar‑lhe a alma requeimada ao fogo da desdita. A espécie de torpor moral em que uma rápida transição de hábItos e pensamentos o lançara pa­receu‑lhe paz e repouso.