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— Que dando á terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportárão.
Existo! como outr’ora, no meo peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulheris, em molles versos.
E ella!... ella talvez nos braços d’outrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,
Com o seo coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, inferno! a goza.
Ella, que eu respeitei, que eu venerava
Como a reliquia sancta! — a quem meus olhos,
Receiando offendel-a, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixárão!
Ella, perante quem sentia eu presa
A voz nos labios e a paixão no peito!
Ella, idolo meo, a quem o orgulho,
A força d’homem, o sentir, vontade
Propria e minha dediquei, — sugeita
Á voz de alguem que não sou eu, — desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um osculo frio, por caricias
Devidas d’um esposo!...
                     Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciume,
Tua funda raiz e a imagem d’ella
No peito em sangue espedaçar raivoso!

Mas tu, cruel, que es meo rival, n’uma hora,
Em que ella só julgar-se, has de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d’éras ja passadas se recorda.
Has de escutal-o, e ver-lhe a côr do rosto
Enrubecer-se ao deparar comtigo!
Preza serás tambem d’atros cuidados,
Terás ciume, e soffrerás qual soffro:
Nem menor que o meo mal quero a vingança.