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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

Enkídu saliento três momentos: a maldição que ele lança contra a porta feita com a mais soberba das árvores que fora trazida por ele da floresta de cedros – o que poderia ser interpretado como a maldição da vida heroica por ele assumida; a maldição contra o caçador que o vira pela primeira vez entre os animais, provocando que deixasse a condição de lullû para tornar-se plenamente humano – o que não deixa de ser a maldição da condição humana por ele assumida; finalmente, a maldição contra a prostituta Shámhat, que fizera dele não apenas humano, mas civilizado – a maldição estendendo-se, portanto, à civilização e a seus requintes. Vou citar apenas o que se refere a Shámhat, mesmo que o texto comporte muitas lacunas:

Depois de ao caçador amaldiçoar de todo coração,
À meretriz Shámhat de coração maldizer ele decide:

Vem, Shámhat, o fado fixar-te-ei,
E o fado não cessará de era em era!
Amaldiçoar-te-ei com grande maldição
E logo célere minhas maldições te aflijam a ti!

Não te faças casa que te agrade,
Não residas —— de teus jovens,
Não te assentes na câmara das moças,
À tua bela veste o chão corroa,

Tua roupa de festa o bêbado com poeira suje,
Não adquiras casa de —— e coisas belas (...)

—— boa mesa, dom do povo, não se ponha em tua casa,
Teu leito que encanta seja um banco,
O cruzamento da estrada, teu domicílio,
Ruínas sejam onde dormes, a sombra da muralha, o teu posto,

Cardo e abrolho descasquem teus pés,
O bêbado e o sedento batam-lhe a face,
—— que te processe e te acuse,
O teto de tua casa não revista o construtor (...)

Porque a mim, puro, enfraqueceste:
A mim, puro, enfraqueceste na minha estepe! (7, 100-131)

Sucede então a cena extraordinária em que o próprio deus Shámash, o Sol, que é o protetor de Gilgámesh durante todo o poema,[1] interfere diretamente na ação, em defesa da prostituta:

Shámash ouviu o que disse sua boca
E súbito uma voz do céu gritou-lhe:

unibh
e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. Šamaš é o deus Sol (em sumério Utu), sob cuja especial proteção se colocava a primeira dinastia real de Úruk, que pretendia dele descender. De acordo com a lista de reis sumérios, Meski’ang-gasher era filho de Utu, tendo sido o senhor e rei no Eana durante 324 anos; foi sucedido por seu filho Enmerkar, o fundador de Úruk, que reinou 420 anos; sucedeu-o Lugalbanda, o pastor, cujo reinado durou 1.200 anos; em seguida veio Dúmuzi, o pescador, que reinou 100 anos; então é a vez de Gilgámesh, filho de um fantasma (lil2-la2), senhor de Kulaba, que reinou 126 anos. A sucessão épica a essa paralela, presente sobretudo nos poemas dedicados a Enmerkar e Gilgámesh, apresentase assim: (a) Utu (o Sol) e Ninsumun (a Senhora Vaca Selvagem) geram (b) Enmerkar, o fundador de Úruk, marido de Inana, com a qual gera (c) Lugalbanda, filho de Enmerkar e também marido de Inana, de quem gera (d) Gilgámesh, filho de Lugalbanda, também marido de Inana, o construtor da muralha de Úruk. Como assevera Woods, Sons of the Sun, p. 80, “a proeminência do deus Sol é um dos poucos temas básicos que dá coesão ao amplamente desconectado e heterogêneo grupo de poemas que toma os feitos legendários da primeira dinastia de Úruk como seu tema. O patrocínio do deus Sol aos reis de Úruk nos textos literários é deveras destacável em vista das práticas cultuais no mundo real, pois, havendo escassas evidências de um culto devotado a esse deus em Úruk, apenas eles sugerem que tal divindade era objeto de especial veneração na cidade”.