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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

Por que, Enkídu, a meretriz Shámhat amaldiçoas?
Ela te fez comer manjar digno de um deus,
Cerveja te fez beber digna de um rei,
Vestiu-te com amplas roupas

E o belo Gilgámesh por amigo conquistar te fez.
Agora, Gilgámesh, teu amigo, teu irmão,
Far-te-á deitar em amplo leito,
Em leito respeitoso deitar te fará,

Far-te-á sentar em sede tranquila, sede a sua esquerda,
Os príncipes da terra beijarão teus pés,
Fará chorar-te o povo de Úruk, fará gemer por ti,
Ao povo exuberante fará encher-se por ti de pêsames.

E ele, depois de ti, suportará as grenhas de cadáver,[1]
Vestirá pele de leão e vagará pela estepe. (7, 132-146)

Observem que belo discurso: a meretriz não merece as maldições, pois foi ela quem introduziu Enkídu nos prazeres da civilização, fez com que se tornasse ele amigo de Gilgámesh e, o que é agora o mais importante, em consequência de tudo isso, é também por causa dela que ele terá uma morte digna, honrada e pranteada. Dizendo de outro modo: caso Enkídu tivesse permanecido entre os animais, teria uma morte, como a deles, incógnita e desassinalada. Ele, no leito de morte, está fazendo o duro aprendizado de que, diferentemente do que se passa com os deuses, a morte é o fado do homem, mas um fado que os homens, com os rituais de luto, podem tornar nobre. Se até então, como se depreende das três maldições, tudo se resumia ao contraste entre o homem civilizado (impuro) e os animais (puros), com a perspectiva da morte novo contraste se estabelece, entre o homem (mortal) e os deuses (imortais).

O que se segue a essa consciência de que é melhor a impureza de ser humano é não a reversão da maldição lançada contra a prostituta, pois, uma vez proferida, não tem como ser eliminada, mas a sobreposição a ela de uma bendição:

Vem, Shámhat, o fado fixar-te-ei,
A boca que te amaldiçoou volta atrás a bendizer-te!

O general e o príncipe te amem,
Quem esteja a uma légua bata na coxa,
Quem esteja a duas léguas sacuda os cachos,
Não se atrase o soldado em o cinto desatar!
Leve-te obsidiana, lápis-lazúli e ouro,
Brincos preciosos ele te leve!
A moço de boa casa, com celeiros cheios,
Ishtar, hábil, te apresente:
Por tua causa ele abandone a mãe de sete filhos, sua esposa! (7, 148-161)

Observe-se como a bênção da prostituta tem como foco aquilo que ela oferece, os prazeres do sexo. Para entender o alcance do que se tem em vista, é preciso considerar que o sexo, como uma esfera do que

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e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. Em sinal de luto, Gilgámesh deixará de cortar os cabelos.