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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

há de mais sagrado no mundo, é justo o contraponto da morte. De um lado, por sua relação com a procriação, que permite que mesmo o indivíduo perecendo, a humanidade sobreviva – o que decorre de uma simples observação de como o mundo se estrutura em ciclos de vida-morte-vida etc. Outro aspecto, contudo, não menos importante, até porque a prostituição sagrada, na Babilônia, não supunha a maternidade, é que no sexo há um aspecto festivo, trata-se de um dos prazeres que faz com que valha a pena ser humano e viver com civilidade. Como a Enkídu ensinara Shámhat, e vale a pena repetir, tomando Úruk como paradigma da civilização, lá é onde “os jovens cingem uma faixa”, “todo dia acontece um festival”, “retumbam tambores” e “as meretrizes têm elegante forma,/ enfeitadas de encantos, cheias de alegria” (1, 226-231).

Não tenho como percorrer com o detalhe desejável os lamentos e a perambulação de Gilgámesh em luto pela perda do amigo, que constitui o último movimento do poema e seu clímax. Resumindo, após constatar que Enkídu voltara a ser poeira e argila, sai o rei para a longa viagem em busca do segredo da imortalidade. Nesse percurso, atravessa a caverna por onde o Sol passa a cada noite e atinge o outro lado, à beira do mar, onde vive uma taberneira, que o instruirá como atravessar as águas da morte para o encontro desejado com Uta-napíshti. Vou me concentrar apenas na motivação da viagem e na resposta que à angústia existencial de Gilgámesh lhe fornecem a taberneira e Uta-napíshti.

No primeiro momento, é a taberneira que pergunta a Gilgámesh por que, sendo herói, vaga ele pelo mundo naquela condição desgraçada:

Se tu e Enkídu sois os que o guarda matastes,
Tocastes Húmbaba, que a floresta de cedros habitava,
Na passagem dos montes matastes leões,

O touro pegastes e o touro matastes que do céu desceu,
Por que consumidas te estão as bochechas, cavada tua face,
Desafortunado teu coração, aniquilada tua figura?
Há luto em tuas entranhas,

À de quem chega de longe tua face se iguala,
Com frio e calor está queimada tua face,
E uma face de leão te tendo posto vagas pela estepe (10, 36-45),

obtendo como resposta:

Por que consumidas não me estariam as bochechas, não cavada a face,
Não desafortunado o coração, não aniquilada a figura,
Não haveria luto em minhas entranhas,
À de quem chega de longe minha face não se igualaria,

Com frio e calor não estaria queimada minha face,
E uma face de leão me tendo posto não vagaria eu pela estepe?
Ao amigo meu, mulo fugido, asno dos montes, pantera da estepe,
A Enkídu, amigo meu, mulo fugido, asno dos montes, pantera da estepe,

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e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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