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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

Chegou, por sua força, ao remoto Uta-napíshti,
Repôs os templos arrasados pelo dilúvio,
Instituiu ritos para toda a humanidade.

Quem há que a ele se iguale em realeza
E como Gilgámesh diga: este sou eu, o rei?
A Gilgámesh, quando nasceu, renome lhe deram:
Dois terços ele é um deus, um terço é humano.

A efígie de seu corpo, Bélet-íli a desenhou,
Realizou sua forma Nudímmud. (1, 29-50)[1]

A propósito desses recursos poéticos (e penso aqui a poética em seu sentido forte, ou seja, enquanto poiética, carpintaria) recorde-se que, diferentemente do que encontramos em Homero, a glória de Gilgámesh é por igual a glória da memória escrita, numa civilização que aprendera a escrever desde o terceiro milênio anterior a nossa era. Isso se expressa não só pelo recurso de apresentar a narrativa como o registro escrito pelo próprio herói numa tabuinha preservada num cofre, como por trazer-se o poema anterior, inscrito em tabuinhas de argila, para o interior do poema mais novo, como se este, o texto mais recente, fosse o próprio cofre de cedro que contém o texto anterior. O admirável em tudo isso é como há uma perspectiva temporal que atravessa a sincronia do presente de quem escreve e de quem, em tempos diferentes, lê, uma como que consciência longuíssima do tempo, possível de ser acessada justamente porque se dispõe de uma também longa tradição escrita.


Com esse amplo enquadramento, a narrativa desdobra-se pelas 11 tabuinhas, distribuída em quatro grandes movimentos que divido assim: a) os excessos do rei Gilgámesh em Úruk, que levam os deuses a criar para ele um par heroico, Enkídu; b) os feitos de ambos, compreendendo a morte de Húmbaba, guardião da floresta de cedros, e do touro do céu, enviado pela deusa Ishtar contra Úruk, por Gilgámesh ter repelido seu assédio amoroso; c) a enfermidade e a morte de Enkídu, que leva Gilgámesh a perambular em busca do segredo da imortalidade, chegando a lugares jamais palmilhados por algum homem, até o encontro com Uta-napíshti; d) o retorno do herói a Úruk, cansado e pacificado por saber que a morte é o lote inelutável do homem.

Tomando mais uma vez como parâmetro de comparação os poemas homéricos, observa-se que aqui, ainda que o texto seja menos longo, a ação se apresenta menos concentrada. Não é possível, por exemplo, calcular por qual período de tempo ela se desenrola, ao contrário do que se pode fazer com relação à Ilíada e à Odisseia, em que a marcação do passar dos dias constitui um poderoso recurso de verossimilhança, a recuperação de feitos que ultrapassam a moldura principal sendo posta na boca de personagens. Em Ele o abismo viu a única narrativa enquadrada é a do dilúvio, o resto ficando por conta do narrador principal. Ora, tudo isso poderia levar a um texto um tanto quanto frouxo, não fosse justamente a presença de elementos que dão firme coe-

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e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. Bélet-íli significa Senhora dos Deuses. Este é o nome sumério da grande Deusa-Mãe, correspondente a Arúru. Nudímmud é um dos nomes do deus Ea (também chamado de Enki).