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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

são à narrativa, os quais passo a analisar, nomeadamente a relação dos feitos heróicos com o sexo, a vida civilizada e a morte, enquanto os traços que definem a condição humana.

Pode parecer que essas linhas de força carecem de conexão, mas é justamente na forma como elas se enredam umas nas outras que acredito repousa toda a “lógica” do poema. Vou adotar um método de exposição capaz de, ao mesmo tempo, acompanhar os três primeiros movimentos narrativos a que fiz referência e, o que espero, também demonstrar a função sintática das citadas linhas de força.

A ação se abre apresentando, como pano de fundo, os excessos de Gilgámesh como rei de Úruk. Conforme o texto, ele, Gilgámesh,

Pelo redil de Úruk perambula,
Mandando como um touro selvagem altaneiro.
Não tem rival se levanta seu taco,
Pela bola os companheiros levantam.[1]

Assedia os jovens de Úruk sem razão,
Não deixa Gilgámesh filho livre a seu pai.
Dia e noite age com arrogância
Gilgámesh rei —— uma multidão guia.

Ele, o pastor de Úruk, o redil,
Não deixa Gilgámesh filha livre a sua mãe. (...)
Poderoso, magnífico, sapiente,
Não deixa Gilgámesh moça livre a seu noivo. (v. 1, 63-75)

São dois os aspectos que configuram a arrogância do herói: de um lado, os feitos esportivos, representados por disputas em jogos com bola e taco, para os quais são desafiados os jovens de Úruk, o que constitui uma forma mitigada de ação heroica; de outro, o que os medievalistas chamam de jus primae noctis, ou seja, o direito do rei de dormir a primeira noite com as noivas.[2] Mesmo que em Ele o abismo viu o último aspecto seja apenas sugerido, em Proeminente entre os reis a referência é explícita, já que se afirma que

com a esposa prometida ele faz sexo,
ele antes,
o marido depois”[3]

O primeiro movimento então principia com as reclamações que a “filha do guerreiro” e a “esposa do jovem” dirigem às deusas (1, 77-78), sendo em seguida atendidas por Ánu (o Céu), que ordena à deusa-mãe, Bélet-íli ou Arúru, que crie um par para Gilgámesh:

Tu, Arúru, fizeste a raça humana!
Agora faze o que se disse:

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e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. Trata-se de trecho de leitura duvidosa (cf. George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 786-786). A referência parece ser ao jogo com pukku (bola) e mukkû (taco), em que Gilgámesh se destaca (cf. o que se afirma em 12, 4-5). Observe-se a estratégica repetição do verbo ‘levantar’ (tebû), aplicado tanto ao taco de Gilgámesh quanto aos próprios companheiros nos esportes.
  2. Sobre quais seriam os excessos, ver Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, cap. 9, “The oppression of Uruk”, p. 178-191, em resumo: a) nada indica que a opressão do rei diga respeito à imposição de algum tipo de corveia aos habitantes da cidade, como se propôs inicialmente;
    b) parece que uma parte da opressão refere-se ao constante desafio do rei aos jovens para disputas atléticas (o que se afirma claramente na tradução hitita do poema: “diariamente os moços de Úruk ele supera”, 1, 1, 11b-13 a);
    c) não há dúvida de que o segundo aspecto da opressão é constituído pelo jus primae noctis. Assim, são dois os aspectos destacados – aliás, mencionados na queixa que os habitantes de Úruk dirigem aos deuses: de um lado, proezas físicas; de outro, proezas sexuais. Recorde-se que a inadequação ao ambiente civilizado (e doméstico) de heróis que realizam trabalhos que exigem grande vigor físico é tematizada em diferentes tradições antigas. Um exemplo disso se encontra nos mitos gregos sobre Héracles: na peça de Eurípides, que analisei em A (des)construção do herói, ao regressar para casa depois do último trabalho heroico, ele termina não só por destruir o palácio, quanto por matar a esposa e os filhos; seu primeiro feito, a morte do leão de Citéron, com cuja pele passa a cobrir-se, durou cinquenta dias, durante os quais dormiu com as cinquenta filhas do rei Téspis (cf. Apolodoro, Biblioteca 2, 4, 10). Na tradição israelita, Sansão é por igual um exemplo desse tipo de herói cuja força condiz pouco com o espaço urbano e doméstico (ver Mobley, The wild man in the Bible and the ancient near East).
  3. aššat šimātim irahhi/ šu pānānuma/ mūtum warkānu (P, 4, 32-34, apud Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, p. 182-184).