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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

Com os animais a água lhe alegra o coração.
E viu-o Shámhat, ao homem primevo,
mancebo feroz do meio da estepe.

Este é ele, Samhat! Oferece os seios!
Abre teu púbis e que ele toque teu sexo!
Não tenhas medo, toma seu alento!
Ele te verá e chegará junto de ti:

A roupa estende, deixa-o deitar-se sobre ti,
E faz com esse primitivo o que faz uma mulher:
Seu desejo se excitará por ti,
Estranhá-lo-á seu rebanho, ao que cresceu com ele.

Abandonou Shámhat os vestidos,
Abriu seu púbis e ele tocou seu sexo,
Não teve ela medo, tomou seu alento,
A roupa estendeu, deixou-o deitar-se sobre si,

Fez com esse primitivo o que faz uma mulher
E o desejo dele se excitou por ela.
Seis dias e sete noites Enkídu esteve ereto e copulou com Samhat.
Depois de farto de seus encantos,

Sua face voltou para seu rebanho.
Viram-no, a Enkídu, e se puseram a correr,
Os bichos da estepe fugiram de sua figura:
Contaminara Enkídu a pureza de seu corpo,

Inertes tinha os joelhos, enquanto os bichos avançavam.
Diminuído estava Enkídu, não como antes corria.
Mas agora tinha ele entendimento, amplidão de saber.
Voltou a sentar-se aos pés da meretriz. (1, 167-202)

Observe-se como fica claro o papel que tem o sexo para fazer com que Enkídu deixe o estado de “homem primevo”, que é como traduzo lullû amēlu (1, 177), lullû sendo o termo com que em acádio se designa o ser humano quando, saído das mãos dos deuses, ainda não atingiu um estado pleno de humanidade (o que Bottéro significativamente traduz como “rascunho de homem” e Sanmartín por “quase-homem”, “semi-homem”).[1] Outras tradições, de forma menos explícita, também tomam a sexualidade como um ponto de chegada na evolução do homem de um estágio primitivo para o atual – recorde-se que, em Hesíodo, isso só se dá com a criação de Pandora, o mesmo estando ao menos sugerido na Torah, com a criação de Eva.

unibh
e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. Conforme observa Mobley, The wild man in the Bible and the ancient near East, p. 223, “a tradição do homem selvagem (...) tem em Enkídu, o selvagem estranho à cultura urbana, seu protótipo”. Em Enkídu se encontrariam os sete traços próprios da figura literária do “homem selvagem”: a) o ser monstruoso que tem relações com a cultura urbana e nela interfere (por exemplo, enquanto Gilgámesh tem uma ação civilizadora abrindo cisternas, cf. 1, 39, o caçador afirma que Enkídu tapa de novo os buracos por ele abertos em 1, 130, ou seja, elimina as marcas de civilização impostas à paisagem); b) o bárbaro rural (a oposição é clara: enquanto o hábitat de Gilgámesh é Úruk, Enkídu é cria da estepe e dos montes); c) o remanescente da humanidade primeva (cf. a expressão lullâ amēla, "homem primevo”, e Veenker, Syro-Mesopotamia, p. 165-166, segundo o qual “Enkídu representa o homem primevo ou original, exatamente como Adão, na Bíblia”); d) o domador de monstros (considerando-se que, com Gilgámesh, ele vence Húmbaba e o touro celeste); e) o xamã (tendo em vista a exegese dos sonhos de Gilgámesh que ele provê na tabuinha 2); f) o duplo (ele foi criado para ser o igual de Gilgámesh, o que os sonhos do rei confirmam em 1, 245-295); g) o deuteragonista (o “homem selvagem” atua em geral não como protagonista, mas como auxiliar, tal como na relação entre Gilgámesh e Enkídu).