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E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

Deve-se sublinhar, contudo, que a meretriz tem outro papel importante: ao voltar-se e sentar-se a seus pés, Enkídu passará a ouvir as instruções que ela lhe dará sobre a vida civilizada. São duas etapas, portanto, como anota Reiner: a humanização, promovida pela experiência sexual e cuja confirmação se dá quando Enkídu é repelido pelo rebanho com que antes vivia; a civilização, decorrente dos ensinamentos de Shámhat.[1] Esta última etapa, por seu lado, compreende três desdobramentos: primeiro, os discursos de Shámhat sobre a vida civilizada (em Úruk, diz ela, “os jovens cingem uma faixa” para práticas esportivas, “todo dia acontece um festival” e “retumbam tambores”, “as meretrizes têm elegante forma,/ enfeitadas de encantos, cheias de alegria” e até, “dos leitos, de noite, saem os idosos!, 1, 226-232); em seguida, a introdução de Enkídu num grupo humano não urbano, uma comunidade de pastores, quando pela primeira vez ele experimenta pão e cerveja (“Pão puseram diante dele,/ Cerveja puseram diante dele. (...) Comer pão não aprendera,/ Beber cerveja não sabia”, 2, 44-48); enfim será ele levado a Úruk. Os elementos se acumulam e entrelaçam: sexo, culinária e vida em sociedade. É assim que se faz o homem. É assim que se manifesta o que tem a humanidade de próprio no confronto com os animais que fugiram de Enkídu desde que ele perdera a “pureza” do “homem primevo”.

O entrelaçamento das linhas de força prossegue nos passos seguintes: a chegada de Enkídu em Úruk e o encontro com Gilgámesh se dá quanto do rei dirige-se à câmara nupcial, na ocasião de um casamento, para exercer seu direito à primeira noite. Impedido de fazer isso, os dois heróis se contrapõem em luta. Diz o texto:

Para Gilgámesh, como um deus, um substituto há,
Enkídu a porta da câmara nupcial obstruiu com os pés,

A Gilgámesh a entrada não permitiu –
E pegaram-se à porta da câmara nupcial,
Na rua brigaram, na praça daquela terra,
O batente abalaram, o muro balançaram. (2, 110-114)

A partir de então, tornados amigos, partirão para a realização de seu grande feito heroico – que substitui o assédio desportivo aos jovens de Úruk.[2] Trata-se da grande expedição à floresta de cedros, localizada no Líbano, onde enfrentarão o monstruoso guardião da mata, Húmbaba. Encontramos aí um tema igualmente civilizatório, pois, além de livrar a terra de um ser sem dúvida monstruoso, está presente o interesse na exploração da madeira que se possa retirar da floresta. Ao voltarem a Úruk, trazem eles enormes troncos cortados de árvores, em especial o de uma cuja copa atingia os céus, com o qual fazem uma monumental porta.

O gancho para o episódio seguinte é contudo dado pela própria beleza de Gilgámesh em sua glória de herói. No regresso da expedição vitoriosa contra Húmbaba, diz o narrador, o rei

Lavou-se da sujeira, limpou as armas,
Sacudiu os cachos sobre as costas,
Tirou a roupa imunda, pôs outra limpa,
Com uma túnica revestiu-se, cingiu a faixa:[3]
Gilgámesh com sua coroa se cobriu. (6, 1-5)

unibh
e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. Reiner, City and bread baked in ashes, p. 118.
  2. Uma questão que tem sido debatida é a da natureza sexual ou não das relações entre Enkídu e Gilgámesh, tendo em vista que, nos sonhos pressagos narrados pelo herói a sua mãe, a deusa Nínsun, na tabuinha 1, ele declara, primeiro tendo sonhado com uma pedra que caiu do céu, que “A ela amei como esposa, por ela me excitei,/ Peguei-a e deixei-a a teus pés/ E tu a uniste comigo” (1, 256-258), o que se repete na narrativa do segundo sonho, com um machado (1, 283-285). A deusa esclarece que a pedra e o machado simbolizam o amigo que está para chegar e confirma que ele, Gilgámesh, o amará como uma esposa, por ele se excitará e com ele se unirá. Alguns comentadores consideram que dados como esses sugerem que a amizade entre os dois heróis envolve relações sexuais, embora isso nunca fique explícito no poema. A esse respeito, Renger, Heroes and their pals, p. 77-78, com base na comparação entre Gilgámesh e Enkídu, Davi e Jônatas, Aquiles e Pátroclo, propõe os seguintes traços como característicos de tais pares de amigos: a) trata-se de uma “forte amizade entre duas e não mais que duas pessoas”, os dois sendo do sexo masculino e formando “não somente um par, mas um par relativamente isolado: os dois não se juntam jamais a um terceiro, não há rivais, não há outros pares nem relações com mulheres”; b) a relação, “sejam quais forem suas características sentimentais, sempre tem um foco externo (...) na realização de gloriosos feitos ou no cumprimento de finalidades políticas”; c) os pares apresentam uma “assimetria estrutural, que consiste numa distribuição desigual de precedência entre seus membros e num tratamento diferente dos mesmos na narrativa”, um deles aparecendo como mais importante que o outro: Aquiles com relação a Pátroclo; Davi em face de Jônatas; Gilgámesh diante de Enkídu. No último caso, continua o mesmo autor (p. 81), “a afeição de Gilgamesh por seu amigo é descrita em termos apropriados para relações tanto com parentes, quanto com objetos de desejo sexual”. Enkídu é comumente chamado de “irmão” (ahu) de Gilgamesh, enquanto o sentimento deste pelo companheiro “é explicitamente modelado em termos de atração sexual” (como no caso dos sonhos premonitórios já referidos e, após a morte de Enkídu, no modo como Gilgámesh o pranteia como “uma viúva” e vela seu corpo como se fosse “uma noiva”). Conclui-se que “a base para essas analogias com parentesco e objetos de desejo sexual parece estar no fato de que a amizade de Enkídu permite a Gilgamesh experimentar um gosto proléptico dos prazeres decorrentes da sociabilidade humana, incluindo casamento e paternidade”. Saliente-se, enfim, que o verbo usado nos versos citados acima, habābum (cf. elišu ahbub, “por ele me excitei”), é o mesmo que aparece nos versos 1, 186 e 193, também já citados, para descrever o último estágio do contato anterior ao coito entre Enkídu e Shámhat. Trata-se, portanto, de uma linguagem altamente erótica.
  3. Lavar-se e mesmo enfeitar-se após um feito heroico constitui um comportamento codificado, que Gilgámesh repetirá, por exemplo, após a morte do touro do céu, nessa mesma tabuinha. A função parece ser análoga à observada por Seri com relação ao Enūma elish, onde, após o entrecho em que se arrolam os feitos de Marduk como guerreiro e demiurgo, há “uma passagem que descreve como ele unge seu corpo com óleo de cedro, põe em si mesmo vestimentas principescas, cinge-se com uma tiara e pega atributos régios como o cetro e o báculo” devendo-se considerar que “o limpar-se e mudar de roupa denotam uma mudança pessoal” (Seri, The role of creation in the Enūma eliš, p. 16). Ainda que Seri não se refira especificamente a este entrecho (remetendo a outros pontos do poema, nomeadamente a 2, 34-35 e 8, 63-64), o importante é ter em vista que ele constitui um autêntico marcador narrativo cuja função é não só destacar uma mudança na personagem (Gilgámesh acaba de firmar-se definitivamente como rei e herói), mas também e principalmente a passagem para um novo desdobramento da própria narrativa.